terça-feira, 4 de outubro de 2011

VAMOS PASSEAR NO BREGA ENQUANTO A POLÍCIA NÃO VEM: PROSTITUIÇÃO E SEGURANÇA PÚBLICA EM CACHOEIRA

SIMONE BRANDÃO SOUZA

Mais uma vez Cachoeira vira notícia de jornal e, como nas matérias anteriores do mesmo veículo, o Correio da Bahia, não é motivado por sua rica cultura, mas pela declaração da polícia de intencionar entrar com uma representação na justiça a fim de fechar os prostíbulos da cidade, ou “bregas” como são mais conhecidos.

Essa decisão, segundo o delegado, não seria fundada no moralismo, mas se justificaria pela “insegurança” gerada na cidade, pois as casas destinadas à prostituição, que todos em Cachoeira sabem a localização, estariam servindo de pontos de encontro e esconderijo para traficantes e de lugar de circulação de delinqüentes.

Seria este mais um capítulo da guerra santa? Os fins justificariam os meios? Que impacto esta medida teria na redução da violência na região ou na captura efetiva de criminosos? Que efeitos ou desdobramentos teriam na vida das profissionais de sexo, que sempre exerceram essa atividade? São questões que não querem e não devem calar!

A prostituição em Cachoeira

As casas de prostituição de Cachoeira existem há dezenas de anos e estão localizadas em rua da antiga zona portuária do município. Ainda no século XIX tinham como clientes, em especial, os viajantes. Nessa época, por ser o último ponto navegável atrás da Baía de Todos os Santos, a cidade tinha o status de entreposto comercial do Estado, o que movimentava bastante as ruas que margeiam o Rio Paraguaçu, favorecendo a instalação ali de cabarés de prostituição.

Aliás, essa associação de zona portuária com área de prostituição, historicamente é percebida de norte a sul do país. Em cidades portuárias a sobrevivência provinha do rio ou do mar e nesses lugares era comum a circulação de pobres, pedintes, prostitutas e marginalizados. Ali também era circulante o dinheiro, que movimentava a economia trazendo o desenvolvimento local.

O desenvolvimento, em geral não acontece sem exclusões, em especial daqueles que são vistos como uma ameaça à ordem urbana, já que se contrapõe à “virtude” e aos “bons costumes” da elite, e por estarem fora das redes mais abastadas se viam, muitas vezes para sobreviver, na necessidade de transgredir normas impostas que objetivavam o controle social.
Esses atores constituíam o centro de interesse da política de limpeza e higienização social que, na busca de sanear os espaços públicos, excluíam de diversas formas pobres, mendicantes e prostitutas que “enfeavam” a imagem das cidades.

Nesse contexto de fins do século XIX e início do século XX, as prostitutas foram alvos preferenciais de uma política moralista e higienista, posto que sua atividade sempre foi repleta de estigmas e preconceitos. Discursos médicos e juristas foram orquestrados e influenciaram na criação de imagens e representações sobre a prostituição, legitimando assim o enfrentamento do poder público a essa questão, pautado na exclusão e criminalização das prostitutas. 

Entretanto, historicamente, nem sempre foi assim...




Prostituição = modo em que as pessoas, 
mediante remuneração, de maneira usual 
comercializam o seu corpo em ato sexual com 
pessoas do sexo oposto ou do mesmo sexo.


Na antiguidade, em algumas civilizações, práticas assemelhadas à prostituição estavam associadas não à venda do corpo, mas à iniciação de jovens na puberdade.

Na Grécia e no Egito esse tipo de atividade sexual na verdade se constituía num ritual, onde as prostitutas eram consideradas sacerdotisas e recebiam honrarias de divindades em troca de favores sexuais, tinha, portanto um caráter místico, sagrado.

Posteriormente, as prostitutas passam a ter um papel político. Seu trabalho, gerenciado pelo Estado, era tributado e enriquecia a elite dominante. Também eram respeitadas e influentes politicamente.   

Num terceiro momento com o Cristianismo, em nome da moral e dos bons costumes as prostitutas passam a ser execradas, em função tanto da moral cristã, quanto da disseminação da sífilis.

Em período ulterior, começa a haver certa tolerância com a prostituição, já que as profissionais do sexo passam a ser consideradas um “mal necessário”, pois assegurariam o funcionamento da sociedade “protegendo” o modelo burguês de família.

Nesta lógica, as prostitutas ajudavam a garantir um padrão de família, onde a união do homem e da mulher muitas vezes não se dava por uma determinação afetiva, mas objetivando afiançar interesses materiais entre as famílias.

Estamos falando de um protótipo familiar, onde o desejo sexual e o exercício da sexualidade e do prazer eram condenados pela igreja, sendo a procriação o propósito maior do casamento. Eram as prostitutas que possibilitavam, portanto, aos homens vivenciar de forma mais livre sua sexualidade, guardando a “santidade” do lar e da esposa.

Nesse contexto social, o corpo da prostituta era entendido como mercadoria e a partir de uma lógica capitalista, tinha valor de troca.

A legislação e a prostituição

No que diz respeito à regulamentação legal das profissionais do sexo, no Brasil a atividade figurou por anos no antigo código penal brasileiro associado à contravenção, entretanto mais recentemente, a partir de 1942 o país adotou o sistema legal abolicionista em relação à prostituição. Nesta lógica a prostituta é percebida como vítima só exercendo a atividade coagida por alguém que a explora e recebe parte do lucro da profissional do sexo.

 Vejam se essa forma de exploração 
 não se assemelha com a lógica de exploração
 da classe trabalhadora pelos empregadores
 no sistema capitalista!!! 


A legislação que vigora neste sistema até os dias de hoje, não proíbe ou pune a profissional do sexo por se prostituir, mas sim o empresário ou agenciador que a “explora”. (Artigos 228 e 229 do Código Penal).

Países como Uruguai, Equador, Bolívia, Alemanha e Holanda adotaram o regime regulamentarista que possibilita aos profissionais de sexo ter garantias trabalhistas legais, desde que cumprindo exigências como exames de saúde periódicos.

Alguns poucos países, entretanto são adeptos do regime proibicionista, caso dos Estados Unidos. Nesta modalidade prostituir-se ou prostituir alguém é ilegal. Os indivíduos não podem decidir ou dispor livremente de seus corpos e de sua sexualidade. É o Estado quem define.

Uma sexualidade que, também na prostituição, não pode ser vista como algo “dado pela natureza”, que está presente no corpo da mulher e que é vivenciado igualmente em épocas e lugares determinados. A sexualidade na verdade abrange processos culturais múltiplos, “como uma invenção social que se constitui historicamente nos inúmeros discursos que regulam e normatizam, produzindo saberes e verdades”. (LOPONTE,2002)

 “Portanto, os significados sexuais e, sobretudo, a própria noção de experiência ou comportamento sexual não seriam passíveis de generalização, dado que estão ancorados em teias de significados articulados a outras modalidades de classificação, como o sistema de parentesco e de gênero, as classificações etárias, a estrutura de privilégios  sociais e de distribuição de riqueza, etc”(Heilborn, 1999)




Hoje no Brasil, a prostituição não é crime, mas a exploração de prostitutas sim. Apesar destas não poderem ser criminalizadas e da categoria ‘profissional do sexo’ figurar na Classificação Brasileira de ocupações do Ministério do Trabalho e Emprego, o movimento organizado de prostitutas no país ainda pleiteia o reconhecimento legal da profissão, dentro do modelo regulamentarista.

Desde 2003 foi encaminhado para apreciação projeto de lei Nº98, de autoria de Fernando Gabeira, que reconhece os serviços de natureza sexual, garantindo direitos aos profissionais do sexo, entretanto o projeto encontra-se parado. 

Projeto de lei n° 98, de 2003
(Do Sr. Fernando Gabeira)
Dispõe sobre a exigibilidade de pagamento por serviço de natureza sexual e suprime os arts. 228, 229 e 231 do Código Penal.
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1° É exigível o pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual.
§ 1º O pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual será devido igualmente pelo tempo em que a pessoa permanecer disponível para tais serviços, quer tenha sido solicitada a prestá-los ou não.
§ 2º O pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual somente poderá ser exigido pela pessoa que os tiver prestado ou que tiver permanecido disponível para os prestar.
Art. 2° Ficam revogados os artigos 228, 229 e 231 do Código Penal.
Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data da sua publicação.




Avanços sim, retrocesso não!

Como é possível perceber tem-se avançado no reconhecimento da prostituição como atividade profissional e conseqüentemente na garantia dos direitos das profissionais do sexo no Brasil. O protagonismo dessa luta é do próprio movimento organizado de prostitutas, que vem, através da mobilização da categoria e de ações engajadas nas áreas de educação, saúde, comunicação e cultura promover a cidadania das profissionais do sexo.

O Grupo Davida do Rio de Janeiro e a Aprosba (Associação de Prostitutas da Bahia) são exemplos dessas organizações de profissionais do sexo que contam com a parceria de órgãos governamentais de Direitos Humanos, Saúde, Segurança Pública, Trabalho, Cultura, ONGS e agências nacionais e internacionais de cooperação, além de artistas e organizações privada. Podemos destacar algumas bandeiras da sua luta:




- Assumir a identidade profissional e buscar o reconhecimento da atividade
- Manter o movimento social de prostituta organizado
- Liberdade, dignidade, solidariedade e respeito às diferenças;
- Protagonismo e autonomia
- Valorização da vida e do trabalho
- Rejeição da vitimização
- Direito à cidadania e recusa ao gueto

A guisa de conclusão:

Retomando a matéria jornalística que originou esse artigo, podemos afirmar que a intervenção do Estado, para acabar com a atividade de prostituição em Cachoeira caminha na contramão da história, posto que movimentos sociais e setores públicos, na contemporaneidade, vêm somando esforços para que haja o reconhecimento dessa atividade profissional e a qualificação do debate na sociedade sobre a questão.

Se a polícia tem por função zelar pela segurança e pela garantia dos direitos dos cidadãos, por que não estender tais objetivos a esse segmento da sociedade, no caso as profissionais do sexo, assegurando o exercício da atividade a mulheres que tem na prática sexual o seu único meio de subsistência e que, segundo seus relatos, por estarem tanto tempo inseridas nesse processo de trabalho e não possuírem outra qualificação profissional e levando-se em consideração o preconceito social, se tornam inempregáveis, ante as exigências e seletividade do atual mercado de trabalho.

A inteligência policial, que parece já ter mapeado as rotinas e rotas de criminosos na cidade de Cachoeira, certamente tem capacidade de enfrentar a violência sem reproduzir mais violência, sem excluir ou criminalizar segmentos da sociedade já tão discriminados e estigmatizados historicamente. É preciso ter o cuidado de não se voltar a reproduzir a lógica higienista, na sociedade, em prol do alcance de objetivos, que podem ser atingidos através de medidas mais coerentes, fundamentadas e que não sejam violadoras dos direitos.



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