terça-feira, 27 de setembro de 2011

DEUS E O DIABO NO RECÔNCAVO: UM DEBATE SOBRE VIOLÊNCIA NA MÍDIA


Simone Brandão Souza[1]


Desde que o mundo é mundo a violência sempre existiu. Nas suas mais variadas formas. Não é uma prerrogativa ou um traço do homem contemporâneo. O viver em comunidade sempre foi permeado por atos de violência, mesmo que essa violência se manifestasse pela necessidade de sobrevivência, como no período pré-histórico onde a hostilidade imposta pela natureza levava os homens a garantirem sua existência, através da violência.

Na medida em que as sociedades vão se complexificando essa violência adquire contornos diferenciados, deixa de ser apenas uma forma de manter a sobrevivência e passa a ser conseqüência da forma como o homem se organiza socialmente.

A fé, professada pelo Cristianismo dos tempos medievais, e seu dogmatismo, ditavam as normas sociais e, através de punições e mortes públicas institucionalizavam a violência, visando à purificação e o castigo exemplar de criminosos ou não, opositores em alguma medida da ordem imposta.

Essa violência que não é só física é também simbólica, vai permanecer presente nas contradições engendradas pela organização da sociedade capitalista, que emerge com o fim do feudalismo e sobrevive ainda nos dias de hoje.

É nessa sociedade de classes, lócus da desigualdade social, que uma grande maioria despossuída dos direitos mais básicos como comida, saúde, trabalho, habitação e educação, vive na pobreza absoluta e uns poucos acumulam riquezas e usufruem das benesses que seu capital pode comprar.

Estamos aqui falando, portanto de outra violência, ou desta com outra roupagem: uma violência que é institucionalizada, que naturaliza tanto a divisão entre riqueza e a pobreza quanto o fosso entre as classes sociais e que não nos deixa perceber a desigualdade como uma condição para manter essa estrutura social vigente.

Neste sentido, podemos afirmar que a violência da desigualdade social é uma conseqüência obrigatória das relações entre os homens para que esse sistema continue a existir. Ela é um produto social e não uma imposição natural ou um desígnio de Deus.

A institucionalização da pobreza, do sofrimento, da desigualdade, da ignorância, do não reconhecimento e do respeito ao outro se dá não porque o homem é mau, mas porque a sociedade é concebida e estruturada de forma a favorecer e estimular a competição, a individualidade, o sucesso pessoal como parâmetros para reconhecimento dos indivíduos, em detrimento da solidariedade entre os sujeitos e do reconhecimento do outro que é diferente, como um também sujeito de direitos.

A violência se torna, portanto, institucionalizada, quando se reconhece a relação de força como uma relação natural e não como uma imposição.

Assim, podemos dizer que as relações entre os indivíduos são tão influenciadas por fatores determinados socialmente e, portanto, externo aos homens, que não se pode relacionar o bem e o mal com os sujeitos, mas com a organização societária.

Fiz essa introdução para mostrar que a violência não se circunscreve à ação individualiza de um homem sobre o outro, mas possui outras formas, é estrutural e institucionaliza à medida em que é produzida e reproduzida nas relações, seja entre os homens, seja das instituições com os sujeitos. O próprio Estado, quando não cumpre com o dever de garantir à sociedade direitos básicos como saúde, educação, segurança também está reproduzindo essa violência.

Então para não se cair no reducionismo, não podemos pensar na violência, ou no enfrentamento dessa violência apenas como uma questão de luta do bem contra o mal.

Digo isso porque, é dessa forma maniqueísta e banalizada que setores da sociedade, em especial parte da mídia, insistem em tratar e discutir a violência.  

A menos de um mês da realização da FLICA, Festa Literária de Cachoeira, um evento cultural importante para a Bahia e que será sediado em Cachoeira, cidade do Recôncavo, localizada a 110 km de Salvador, conhecida por seus encantos arquitetônicos, herança do período colonial e escravagista vivido intensamente nestas terras, e por sua cultura de raízes africanas que tem no samba de roda e no candomblé, algumas de suas maiores expressões, talvez nem tão conhecidas por muitos como mereceria, torna-se notícia por três dias e merece várias páginas de um jornal popular – Correio da Bahia - em função da “descoberta” da existência do tráfico de drogas em Cachoeira.

É importante ressaltar que essa “descoberta” da mídia, não é nenhuma novidade para os moradores de Cachoeira, nem para moradores de outras cidades do interior, que também já convivem com a expansão do tráfico em seus recantos há anos, num processo já observado em estudos nacionais e identificado como interiorização da violência.


De acordo com os dados do “Mapa da violência no Brasil (2010)”[2], estudo que acompanha há cinco edições a evolução da violência no país, baseando-se prioritariamente nos registros de morte violenta por causas externas, identificou-se uma mobilidade territorial dos pólos dinâmicos do fenômeno no país ao longo dos últimos anos.

 Se até 1999 as maiores taxas de violência se concentravam nas capitais e nas grandes metrópoles, nos anos subseqüentes, percebe-se uma estagnação dos números e ato contínuo, um crescimento desses eventos no interior do país.[3]

 O tráfico há muito existe em cachoeira, segundo os próprios moradores da cidade. Por que agora a mídia dá holofotes a ele e destaca a cidade pela existência, em sua comunidade, de um suposto líder/criador de um “comando” que seria responsável pela distribuição de drogas em cinco pequenas cidades do Recôncavo (Cachoeira, São Félix, Muritiba, Conceição da Feira e Humildes), num universo de 417 cidades baianas. O que se quer legitimar com esse discurso? Qual a sua eficácia no combate à violência?

Assim como várias formas de violência foram reinventadas nas diferentes relações sociais ao longo da história, discursos embasados no senso comum, fantasiosos e espetaculistas, que transformam o drama humano em mercadoria rentável para os donos das mídias, recuperam explicações para a violência e as transformam em verdades unívocas, que há muito já foram contestadas, aprofundadas e desmistificadas por estudiosos do tema, como Alba Zaluar, Ignácio Cano, Sérgio Adorno, dentre outros.

Aliás, essas construções narrativo-discursivas que buscam impor univocidade e universalidade, nada mais são do que o exercício da violência simbólica, que Bourdieu (2005) conceitua de “todo e qualquer instrumento – estruturado e estruturante – de comunicação e de conhecimento que contribua para operacionalizar ou legitimar a dominação de uma classe sobre a outra, de grupos ou indivíduos sobre os outros”. (Varjão, 2008). É preciso, portanto desconstruir ou desmistificar essas univocidades.

Desmistificar significa destituir o caráter místico ou misterioso de algo ou alguém e ainda segundo Houaiss, seria desnudar esse alguém, ou algo, daquilo que mistifica, engana ou embeleza de maneira falsa.

Nas matérias veiculadas pelo jornal Correio da Bahia nos dias 20, 21 e 22 de setembro para além de se noticiar que a cidade de Cachoeira abriga tráfico de drogas, estabelece-se uma narrativa sobre a existência de um duelo do bem contra o mal, onde o traficante é o mal e a polícia representa o bem que irá redimir a sociedade.

A matéria que inaugura a série de “reportagens” se ocupa da personificação do tráfico de Cachoeira: o jovem traficante Júnior (27 anos), pardo, origem humilde, que trabalhava como pintor na construção civil, mas ambicionava mais e por isso virou assaltante. Após três prisões, “resolveu” tornar-se “mais poderoso” e criou a facção Primeiro Comando do Interior, “sonho” que acalentava há muito tempo, segundo seu “amigo de infância” e fonte anônima do jornal. O “informante-amigo”, relata ainda que Júnior tinha “vocação para bandido”, que gostava de ler, e uma de suas leituras era Marx (Karl Marx). Este é o perfil traçado pelo jornal, que teve também como fonte o delegado de polícia de Cachoeira que atua a aproximadamente cinco meses na cidade.
Afirma ainda, que o traficante possui o “corpo fechado” em três terreiros de candomblé da região e que teria inclusive feito um “trabalho” espiritual em favor dos orixás contra o delegado da cidade.

A segunda e terceira matérias, veiculadas nos dias 21 e 22/11, mostram o delegado, que é evangélico há dois meses, e sua saga na caça do traficante Júnior. Com poucos policiais ele segue, como diz com suas próprias palavras “ungido e protegido pelo poder de Deus, pois ele está ao nosso lado”. Em ação, na sua “guerra santa” o delegado além de fazer incursões nas comunidades pobres onde Júnior estaria escondido, para prendê-lo, distribui o Novo Testamento para detentos da carceragem e faz palestras nas escolas sobre drogas, abrindo o evento com a saudação: “paz do senhor para os irmãos”.

Mas o estado não é Laico?

De fato ele é laico, ou pelo menos deveria ser e nortear suas políticas e ações pelo marco legal, baseando-se em estudos e investigações confiáveis, pautando-se na ética e no bom senso e não em pré-conceitos, moralismos ou dogmatismos religiosos, que têm legitimado tantas guerras religiosas, ou “guerras santas” países afora, onde imperam o fanatismo e a intolerância religiosa, países em que o Estado não é laico, mas religioso.

E se em países protestantes e católicos, em especial os europeus, durante séculos houve uma preocupação com a influência nefasta do diabo (o mal) no homem e no conhecimento por este produzido, aqui no Brasil, que é tradicionalmente e majoritariamente católico/protestante, esta nunca foi uma preocupação central.

No Brasil, o diabo ou o mal, foi nefastamente associado, muitas vezes, às religiões de raízes africanas e à sua simbologia, bastante difundidas nas classes populares, se bem que integrantes de outras classes também transitassem neste universo. Seus orixás e seus exus tidos como a representação do mal protegeriam todos aqueles que lhes oferecessem presentes, fossem seus protegidos bandidos ou não.

Culturalmente, no Brasil essa fundamentação das religiões de origem afro no diabo, como personificação do mal, não é tão forte. Seguimos assim numa relação de tolerância religiosa, até que não se insufle o desrespeito à liberdade de cultos.

A guerra real que se trava aqui, e que penso, matérias jornalísticas como a que estamos tratando estimulam e legitimam, é a guerra no campo das relações de classe, onde os pobres são vinculados à criminalidade e violência e associados à fonte do mal, derivando daí uma luta entre polícia e pobres, estes últimos quase sempre vistos como bandidos (perigosos).

Essa luta é legitimada pela sociedade que, cega pela onda de medo da violência, apóia as práticas da polícia de perseguir e matar pobres e pretos, personificação da violência e do mal que aflige à sociedade. Os jovens pobres, e mais ainda os pretos, são, portanto discriminados, estigmatizados e considerados inferiores.

A crença das classes populares em orixás, exus e o recurso de tê-los como protetores e de “fechar o corpo”, parecem ajudar a reforçar a lógica de que os bandidos, já que são oriundos das camadas pobres, são pactuados com o mal, e mesmo que não se recorra à questão religiosa os criminosos são, de uma forma geral, tratados pela polícia como o “mal absoluto”. É como se ali, naquele indivíduo não estivesse presente o humano. Se lhe é negada a condição humana, igualmente lhe é negada a cidadania e seus direitos.

A favela seria, portanto o lócus nascedouro do mal, composta por indivíduos sem humanidade: os bandidos, que devem mais do que combatidos, ser extirpados da sociedade. É essa lógica que associa a pobreza à violência, noção encampada pelas classes sociais mais abastadas, estabelecendo uma relação hostil entre classes e legitimando a prática de extermínio policial das classes pobres.

A lógica da separação do bem e do mal, tendo o bandido como o lado mau, reforça neste seu comportamento “anti-social” o seu papel de bandido. Sem lhe dar opções, cumpre-se o que já se previa sobre o futuro daquele indivíduo. Como afirma Zaluar “as acusações feitas sem nenhum rigor pela lei acabam também por ter um sinistro papel de ajudar a compor a imagem que servirá de espelho ao bandido. Do mesmo modo que as bruxas, identificadas com as figuras que se dedicavam a Satanás nas crenças tão ricas em simbolismo e imaginação então enraizadas pela população, acabavam por confessar (muitas também pela tortura) crimes imaginários, os bandidos, auto identificados com estes personagens criados pelo preconceito e pelo medo (...) acabam por realizar as ações que se espera que realizem”. (Zaluar, 1994)

Toda essa lógica pode reforçar e legitimar a utilização de práticas violentas pela polícia, um dos poucos representantes do Estado nas favelas. Cria-se dessa forma, condições concretas e ideológicas para revigorar e justificar essa luta do bem contra o mal, da polícia contra bandidos/pobres, de uma classe contra a outra.

Essa violência que se deve evitar, é bom reforçar, não está só no enfrentamento ao tráfico, mas na ausência de políticas públicas, uma violência institucional que muitas vezes contribui para o surgimento de outros tipos de violência e que quase sempre é associada às camadas que tem seus direitos violados de forma mais intensa e que contraditoriamente são o foco principal das políticas de segurança pública já que são pensadas como as classes perigosas. Essa violência velada do estado não vira notícia nas capas dos jornais.

Outra questão importante de se abordar é quando o jornal dá ênfase à existência de uma guerra “santa” entre atores sociais, que possuem religiões diferenciadas em suas ideologias, na qual o bandido, ou o “mal” é do candomblé e a polícia, ou o bem, é protestante, corre-se o risco de reforçar a associação das religiões de matriz africana com o mal e a violência, estimulando o preconceito e a intolerância religiosa, numa cidade que tem nos cultos afros um dos seus pilares culturais.

É correto que traficantes sejam presos, posto que a prisão ainda é o modelo de punição aos crimes em nossa sociedade. É certo ainda que todo tipo de violência seja combatida, mas é preciso que a lei também alcance aqueles que estão ocultos, que estão à priori do lado da lei e que facilitam e compõe a engrenagem que alimenta esse tipo de atividade criminosa, na qual Júnior está inserido: o tráfico de drogas,  que movimenta bilhões e absorve milhares de jovens, ceifando a vida de outros tantos milhares.

Jovens como Júnior, que sofrem com a invisibilidade, que ocorre não só por questões materiais, econômicas, mas também afetivas ou culturais e, portanto não se limitam às classes mais pobres.
No caso de jovens das camadas mais vulneráveis, e aí poderíamos citar novamente Júnior, é difícil, não digo impossível, pensar em alguém que tenha por sonho ser bandido como relatado no jornal. 

Poderíamos sim entender essa “escolha” pensando no desemprego estrutural e nas novas exigências do mercado de trabalho que exclui cada vez mais jovens do mercado de trabalho. Um mercado baseado na lógica capitalista de exploração do trabalhador, determinado por relações de trabalho pautadas em baixos salários e submissão.

Essas relações trabalhistas, observadas e algumas vezes vivenciadas pelos jovens, não se constituem como modelos de sucesso e admiração que dignifiquem a classe trabalhadora. Nesse caso, o mundo do crime com seus símbolos de poder e virilidade muitas vezes é a possibilidade de empoderamento viável para a juventude que ingressa no crime.

O contexto de desproteção social também se associa à outros elementos como a corrupção policial e judicial, à fidelidade obrigada ao bando do qual se faz parte, à dependência química não tratada pela saúde pública à contento. Um mix de situações, que juntas conformam um sistema que coopta e aprisiona os jovens que estão na criminalidade, criando um círculo vicioso que aumenta os índices de violência e não combate a criminalidade.

Por fim gostaria ainda de refletir sobre um ponto exposto pela matéria do Correio da Bahia, que diz respeito ao silêncio da população que apoiaria Júnior por conveniência ou medo.

Essa interpretação da ligação de criminosos com a comunidade da qual fazem parte, gera uma identificação simbólica dos trabalhadores com os bandidos, colocando-os no patamar de aliados, e longe de explicar esta relação e contribuir para a democracia nas comunidades pobres, reforçam a associação entre pobreza e violência e a criminalização da pobreza.

Há sim uma diferenciação nas comunidades entre criminoso e trabalhador, entre bandido e polícia, embora esta, muitas vezes seja conivente e até parceira do crime. Não há na realidade, um acordo tácito e tranqüilo entre moradores e bandidos, há também o medo, a imposição do poder, através da ameaça da violência.

Essa realidade social é permeada pela violência, que “vem de todos os lados” e é estrutural. Não há aqui uma polaridade entre bem e mal. Há sim um sistema que subjuga os indivíduos.

Para se libertar, se emancipar existem algumas poucas possibilidades: uma através do conhecimento, e nisso as leituras de Marx subsidiaram e continuam a subsidiar a transformação da sociedade, contribuindo para uma realidade social mais justa. Outro caminho seria através da transgressão, da marginalização.

Talvez se Júnior tivesse tido outras oportunidades em sua vida, como alguns jovens daqui do Recôncavo tiveram a possibilidade e ingressar na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia em Cachoeira, as leituras que fez de Marx o tivessem ajudado a transformar a sociedade num mundo mais justo e menos violento. E você o que tem feito quanto a isso? Qual a sua contribuição para o nosso belo quadro social?








[1] Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Leciona as disciplinas de Direitos Humanos e Estágio Supervisionado em Serviço Social I e III. Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Violência, Gênero, Raça/Etnia da UFRB onde coordena a linha de pesquisa Violência e Direitos Humanos. Vice Líder do Grupo de Pesquisa Gênero, Raça e Subalternidade. Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense, Especialização em Serviço social e Saúde (UERJ), Especialização em Segurança Pública, Cultura e Cidadania (UFRJ - SENASP), Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisa Social (ENCE/IBGE).
[3] O fenômeno da interiorização da violência foi observado ainda em 2005 no Mapa da Violência para o Estado de São Paulo e em 2006 no Mapa da Violência do país, sendo confirmado em 2008 com o Mapa da Violência dos municípios brasileiros e mais recentemente no Mapa da Violência de 2010 para todo o país.