sábado, 29 de agosto de 2015

Visibilidade lésbica e continuum lésbico: vamos avançar?



Simone Brandão

É perceptível que, a cada ano, o dia da visibilidade lésbica ganha mais notoriedade, basta fazer uma busca em  ferramentas da internet, como o Google, para observarmos que mais páginas tem abordado a data,  entretanto, quase sempre com o objetivo de  divulgar as programações de diversos Estados e municípios na comemoração do dia, seja com atividades promovidas pelo poder público ou pelo ativismo Lésbico e LGBT. Em número menor estão as postagens que procuram refletir sobre a importância da data e a sua contribuição no combate à lesbofobia, ao machismo e à heteronormatividade, situando a comemoração do dia da visibilidade lésbica como uma prática necessária à desestabilização da agenda conservadora da sociedade sobre a lesbianidade, que ignora a violência e exclusão sofridas por lésbicas cotidianamente.

Há um ano atrás publiquei  na internet um texto sobre a visibilidade lésbica,  onde, de início, eu contextualizava historicamente o processo de  autonomia das lésbicas no ativismo LGBT como um importante movimento de contraposição ao apagamento da existência lésbica na história, apagamento esse que é reiterado pelo tratamento dado à lesbianidade como um apêndice da questão homossexual , e não como uma pauta que tem peculiaridades e contornos próprios e que portanto não pode ser secundarizada na agenda LGBT. Tratei ainda da escassa produção acadêmica produzida por e sobre lésbicas e a importância de, nós lésbicas, assumirmos esse protagonismo, na medida em que de uma forma geral as produções sobre homossexualidade possuem um olhar masculino, invisibilizando a lesbianidade na agenda LGBT ou mesmo tratando-a de forma enviesada.

Acredito que hoje, em 29 de agosto de 2015, podemos comemorar a maior autonomia e o crescimento do movimento lésbico além do aumento das produções sobre lesbianidade, saberes construídos não só pela academia mas também pelo ativismo. Entretanto esse avanço ainda é lento e  pouco, mas poderia ser maior se conseguíssemos promover entre nós lésbicas a sororidade tão defendida e apregoada pelos ativismos feministas e lésbicos.
Adrienne Rich é uma autora feminista lésbica bastante citada não só nas produções acadêmicas sobre lesbianidade  mas também reconhecida como fonte de inspiração do ativismo lésbico. Penso que um de seus textos mais importantes e referenciados, inclusive por mim,  é “Heterossexualidade compulsória e existência lésbica”, especialmente porque Rich, para além de tratar do apagamento proposital da existência lésbica no pensamento feminista e na história, enquanto estratégia de manutenção da heterossexualidade -  que  a autora entende como uma “instituição política que retira o poder das mulheres” -   vai propor o continuum lésbico ou essa  grande gama de acontecimentos de identificação entre as mulheres , que não passa necessariamente pela aproximação erótica, e que é capaz de desestabilizar a heterocentricidade reproduzida nas diversas relações sociais e pensamentos, inclusive no feminismo e por que não também na lesbianidade.

Podemos comparar esse “continuum lésbico” com a sororidade e penso que apesar de nós lésbicas compreendermos a sua importância como um ato de resistência e de recusa das diferentes formas de opressão e preconceito como a lesbofobia, o machismo, o sexismo, o racismo e misoginia, ainda estamos longe de exercitar essa identificação tão necessária à nossa existência política.

Criticamos o nosso apagamento, presente em diversas âmbitos, inclusive aquele que nos consideramos incluídas, mas quantas vezes nos apagamos e nos excluímos mutuamente, reforçando a perspectiva gay-masculina-branca -patriarcal presente desde os espaços de ativismo e acadêmicos que estamos inseridas e que se propõe a discutir e promover as subalternidades , especialmente dos segmentos LGBT, mas que na verdade elegem suas preferências e promovem hierarquias, tão criticadas em seus discursos anti colonialistas.


Apesar do sentimento de pertencimento à grupos vinculados à questão LGBT ou lésbica não podemos cegar diante de suas fragilidades, sob pena de não avançarmos na promoção da nossa visibilidade e no enfrentamento da lesbofobia, precisamos (nos) questionar sempre. Precisamos encarar a rivalidade, competitividade, auto promoção  e super valorização de projetos solos em detrimento de projetos coletivos ainda presentes nos grupos acadêmicos e de ativismos LGBT e Lésbicos, transformando a tão desejada sororidade ou o continuum lésbico em uma quimera. As diferenças de pensamentos ideológicos e políticos existem e podemos crescer com elas e tornar a luta mais forte, entretanto quando não há maturidade e há excesso de individualidade e vaidade o que conseguimos é fragmentar ainda mais o debate,  segregando quem já é historicamente abjetificadx  e portanto excluídx.  Como desestabilizar a opressão se reforçamos o círculo onde a pessoa oprimida também oprime?

quinta-feira, 24 de abril de 2014

O caso DG ou por mais Estado Social e menos Estado Penal!





É impossível aceitar a emissora Globo com seu discurso que reforça o mais Estado penal, mas nunca reivindica o mais Estado social! Vi isso hoje na Globo News com Leilane Neubarth num debate com Breno, jurista do Rio de Janeiro, analisando a morte de DG no Morro Pavão Pavãozinho em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, e a relação dessa morte com o tiroteio entre policiais e o bando de traficantes liderados por Pitbull, um traficante, que estava foragido desde 2013 quando foi beneficiado por visitas periódicas ao lar.

A jornalista pergunta ao jurista quais os critérios para esse benefício e quem o concede,  e é esclarecida pelo jurista que o mesmo é concedido pelo juiz mediante informações prestadas pelos diretores das unidades prisionais, baseado em bom comportamento durante cumprimento da pena e existência de família com endereço fixo que se comprometa com essa medida de progressiva inserção social. Ele explica ainda, que a pena privativa de liberdade é progressiva, ou seja vai do regime fechado ao aberto, passando pelo semi-aberto  e que tem por pressuposto garantir que a reinserção do preso na sociedade seja gradativa, o que se converte em benefício para o preso e para a sociedade.

Leilane continua suas inquisições questionando a concessão do benefício, querendo responsabilizar o juiz, o diretor e sugerindo que a lei deve ser mais dura, ou seja,  que ao preso deve ser negado qualquer benefício se este for entendido como um chefe do tráfico, por exemplo. O Jurista explica que para casos de presos considerados líderes já existe o RDD – Regime Disciplinar Diferenciado – bastante rígido e que, portanto, só se  pode  permanecer no mesmo por um ano, e que toda pena um período cessa, tem fim,  e que nosso sistema penal é progressivo, o que é bom pois permite ao sujeito ir se readaptando à vida em sociedade aos poucos.

Talvez fosse interessante que o jurista fizesse um resgate para Leilane, contando um pouco da história das prisões e contextualizado a prisão hoje, seus objetivos e os dilemas da reinserção social. Lamentavelmente ele não fez, mas tentarei brevemente situar essas informações aqui.

Na verdade se remontarmos a história do surgimento das prisões veremos que essa instituição,  através de suas normatizações, objetivava não só punir os criminosos, a partir de uma lógica moral de retribuição do mal causado, mas produzir, através do castigo, homens dóceis para  servir ao sistema capitalista, já que uma forma de punição, além da perda da liberdade, era o trabalho forçado de forma a tornar esses indivíduos uma massa de pessoas subservientes para vender barato sua mão de obra de forma a expandir o capitalismo, através do trabalho alienado.

Então podemos dizer que historicamente a prisão é uma produção social, é um mandato da sociedade, e a relação de custódia representa os interesses dessa sociedade e da sua moral.

A gente pode afirmar também que, a função social da prisão deveria ser, hoje,  a redução da violência, a redução da criminalidade e não somente a punição do criminoso ou a retirada desse criminoso do convívio social. Entretanto, a função social da prisão que não é falada, que é velada, mas que serve ao sistema é custodiar os “sobrantes” do mercado de trabalho.

Esses sobrantes como diz Loic Wacquant (1997)  em "As Prisões da Miséria" é aquela massa de indivíduos que na lógica da criminalização da pobreza, própria do modelo neoliberal, é tida como a classe perigosa, por sua aparência, pelos locais que reside e pelo grupo social que faz parte. São aqueles que o mercado de trabalho hoje, por usa configuração e exigências, não absorve e que depois de anos na prisão vão se tornar ainda mais inempregáveis, pois estão completamente obsoletos em relação às expectativas do mercado.

Nesta lógica da criminalização da pobreza, diminui-se o estado social, ou desinveste-se nas políticas públicas e investe-se no estado penal. De que forma? Através da construção de mais presídios, do armamento das polícias ávidas no combate dos indivíduos das classes perigosas, do aumento do aprisionamento e do recrudescimento das leis.

Hoje, nesse cenário sombrio do sistema prisional, a proposta de "ressocialização" da prisão é uma falácia pois como afirma Baratta (1990)" “Tratamento” e “ressocialização” pressupõem uma postura passiva do detento e ativa das instituições: são heranças anacrônicas da velha criminologia positivista que tinha o condenado como um indivíduo anormal e inferior que precisava ser (re)adaptado à sociedade, considerando acriticamente esta como “boa” e aquele como “mau”",  então nessa lógica funcionalista/positivista a socialização que os indivíduos tiveram é negada, rechaçada, já que é considerada equivocada se comparada a um modelo burguês de socialização que, se pressupõe, seja o ideal. Por esse sentido ideológico que a ressocialização possui e pelas práticas que a prisão estabelece, priorizando a ordem interna e a segurança externa em detrimento de atividades de reinserção social, é que "a prisão não pode produzir resultados úteis para a ressocialização do sentenciado mas (...) ao contrário, impõe condições negativas a esse objetivo” .

"O sistema prisional deve, portanto, propiciar aos presos uma série de benefícios que vão desde instrução, inclusive profissional, até assistência médica e psicológica para proporcionar-lhes uma oportunidade de reintegração e não mais como um aspecto da disciplina carcerária – compensando, dessa forma, situações de carência e privação, quase sempre freqüentes na história de vida dos sentenciados, antes de seu ingresso na senda do crime." (BAratta, 1990)

Pensando sobre todas essas questões  e retomando o programa da Globo News é muito interessante perceber como se questiona o tempo todo a concessão de benefícios (que são direitos, que é lei) para presos, como se reforça o tempo todo a necessidade de endurecer penas e leis, mas ninguém (a mídia, especialmente) questiona ou critica  de que forma o sistema prisional promove a reinserção social dos presos, se a política penitenciária de fato procura “recuperar” o preso no sentido de promover práticas de possibilitem esse retorno à sociedade de forma digna e fora da criminalidade.


 Eu digo que não! Que não existe política penitenciária para esse fim, que o Estado não consegue recuperar ninguém porque não há investimento nessa recuperação, não há políticas que objetivem esse fim,  a prisão é apenas violência e violação de direitos. A sociedade por sua vez é refratária à reinserção dessas pessoas. Quem lhes dá oportunidade quando saem da prisão? Quase ninguém! E, para além disso, existe um mercado enorme legal que lucra com a criminalidade e com as prisões: quem as constrói, fornece comidas, fardamentos, armamentos, equipamentos de segurança, segurança patrimonial, administração de cadeias privatizadas, e por aí vai...isso ninguém toca, isso ninguém questiona ou se mobiliza para mudar.

 Enquanto esse pensamento pequeno burguês permanecer a criminalidade não vai diminuir e outras vítimas como DG continuarão a existir.


"Redefinir os conceitos tradicionais de tratamento e ressocialização, em termos do exercício dos direitos das pessoas presas, e em termos de benefícios e oportunidades de trabalho -- inclusive na sociedade -- que são proporcionadas a elas, depois do cumprimento da pena, por parte das instituições e comunidade, ao nosso ver, constitui um núcleo importante da construção de uma teoria e uma prática novas da reintegração dos apenados, de acordo com uma interpretação dos princípios e das normas constitucionais e internacionais sobre a pena." (Baratta, 1990)

Referências Bibliográficas

BARATTA, Alessandro. Ressocialização ou Controle Social: Uma abordagem crítica da “reintegração social” do sentenciado. Alemanha Federal. Disponível em: www.eap.sp.gov.br/pdf/ressocializacao.pdf.

WACQUANT, L. “Proscritos da cidade: estigma e divisão social no gueto americano e na periferia urbana francesa”. In: Novos Estudos CEBRAP. n.º 43. 1997

______. As prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Zahar , 2001.


quinta-feira, 20 de março de 2014

Direitos Humanos para quem?

Tenho visto, após a morte de Cláudia no Rio de Janeiro e com os ataques às UPP's no Rio de Janeiro, algumas postagens no Facebook, perguntando pelos “Direitos Humanos”, reforçando aquele velho discurso que os direitos humanos são apenas para as vítimas das ações policiais e não para os policiais.

Primeiro precisamos pensar que os Direitos humanos não resultam de uma concessão da sociedade política, mas são direitos que a sociedade política tem o dever de reconhecer  e garantir, conforme sinaliza Herkenhoff (2003) e que foram conquistados ao longo dos tempos, portanto todas as pessoas, independentemente de sua condição étnico-racial, econômica, social, de gênero ou  criminal são sujeitas e detentoras dos direitos humanos. Portanto se eu  tenho direito a vida, o outro tem o dever de preservar a minha vida. Os direitos são universais.

A  crítica conservadora aos direitos humanos, no entanto,  se mistura um pouco com o senso comum e  entende os DH como  privilégios legitimados.

Ora, quando  não se entende os direitos como universais, começa-se a interpretá-los como privilégios e a agir para garantir privilégios ou negar os direitos que se entende como privilégios.

Então Setores da mídia, da própria sociedade e agentes políticos encampam e reproduzem o discurso de que os direitos humanos ignoram as vítimas e que por isso não pensam no conjunto bom da sociedade.

Nessa lógica conservadora, que é também punitiva, a convivência se faz pela violência, e aí começa-se a  dizer que existe uma separação entre direitos de bandidos e direitos de pessoas corretas criando-se um processo de legitimação da violência contra esses segmentos, seja, por exemplo em relação à presos, seja relativo aqueles suspeitos de serem criminosos. Isso também legitima o endurecimento de leis ou o tratamento de expressões da questão social com mais violência.

Então, na visão conservadora, a ordem só é possível, a partir da violência ou de práticas antidemocráticas, visto que as leis são consideradas insuficientes ou “coniventes” com os atos criminosos.

Essa é a lógica que os segmentos mais conservadores tem dos direitos humanos: que esses direitos seriam apenas para humanos considerados direitos e não para todos os seres humanos, e com isso o próprio Estado viola os direitos, quando age de forma discricionária e nega determinados direitos a determinadas parcelas da população.

O que precisamos entender de uma vez por todas é que os DH são padrões de referência na vida civilizada, e que também expressam e traduzem os diferentes níveis de cidadania e não são os direitos “dos humanos direitos”, mas todos os direitos de todo ser humano, como diz Dahmer e Vinagre (2007).

Os direitos humanos buscam, na verdade, defender a pessoa humana não de um indivíduo qualquer isolado, mas do exercício abusivo do poder, principalmente das instituições do poder político, econômico, social e cultural.

Quando se fala que os “direitos humanos defendem os bandidos e não a polícia” , na verdade essa visão do senso comum não percebe que o foco dos direitos humanos aí é a relação de conflito que se dá entre: pessoa humana (criminoso) X Estado ( polícia) no sentido de se evitar abusos de poder (torturas, prisões ilegais) do Estado com essa pessoa humana (mesmo consideradas criminosas).


"Podemos dizer que existe uma questão de DH quando há uma relação de poder que gera desigualdade e discriminação, e a parte vulnerabilizada é discriminada, submetida, forçada abusivamente aos interesses/vontade da outra parte. EX:homem X mulher (relações de gênero), adulto X criança, Branco X negro, rico X pobre, Hétero X homo, pessoa não deficiente X deficiente, jovem X idoso, pessoa humana X outras espécies" (Borges, 2006)


Na verdade os DH não regem relações entre iguais, apesar da pressuposição de igualdade entre os indivíduos, mas opera em defesa dos vulnerabilizados nas relações de poder e têm se movido na história impulsionado pela mobilização da sociedade civil contra todos os tipos de dominação, exclusão e repressão.


O que vemos no momento é a morte de uma mulher, pobre, negra trabalhadora ocasionada pela ação de policiais que representam o Estado e que na relação de poder com a sociedade, ou com o cidadão, seja ele criminoso ou não, tem mostrado que há uma grande desigualdade, onde esse braço do Estado tem pesado a sua mão, traduzindo-se nos números de mortes resultantes das ações de policias como aqueles envolvidos na morte de Cláudia. Talvez os ataques às UPPs sejam uma tentativa, dessa comunidade restituir esse poder, pois  é também na ausência do poder que a violência tem solo fértil para se propagar.


Referências Bibliográficas


ARENDT. Hannah. Sobre a Violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992.

BORGES, Alci Marcus Ribeiro. Direitos Humanos: conceitos e preconceitos. Jus Navigandi. Teresina, ano 11, n.1248, 2006.

PEREIRA, T.M. Dahmer e VINAGRE, M. Ética e direitos humanos. Curso de capacitação ética para agentes multiplicadores, caderno quatro. Brasília; CFESS, 2007.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O AMOR LGBT NA TV: ENTRE BEIJOS E CONSERVADORISMO

Simone Brandão Souza


A Globo não é boba não!  Com o crescimento do poder político dos evangélicos e a midiatização neopentecostal, envolvendo aí a mercantilização da fé e dos seus produtos, a emissora parece ter vislumbrado nesse público um filão econômico e também a possibilidade de estar aliada à esse poder emergente. Para tanto, criou personagens evangélicos, passou a promover festivais de música gospel, o que parece ter acontecido também após aproximação recente com o líder Silas Malafaia, segundo notícias da mídia.

Ao mesmo tempo em que se redime junto a esse público (que no passado demonizava a televisão e hoje são consumidores de entretenimentos religiosos), cria personagens evangélicos considerados coerentes com os mandamentos religiosos, à exemplo de Gina de Amor à vida,   expurgando as personagens crentes caricatas nas telenovelas, e  estabelecendo relações econômicas promissoras com as lideranças neopentecostais.

Mas se a Globo acende vela para Deus também acende para os gays, mas bem no fim do túnel!

Depois de tantas novelas onde o amor de gays e lésbicas foi apresentado de forma superficial ou simplesmente retirado das tramas, à exemplo das personagens de Christiane Torloni e Silvia Pfeiffer em Torre de Babel quando foram assassinadas num claro receio da reação de uma sociedade ainda heteronormativa e conservadora, a globo resolveu promover um beijo gay, o primeiro na emissora, no apagar das luzes da novela Amor à Vida, no ´derradeiro capítulo, e só depois de os espectadores se dizerem frustrados com a cena de dias antes, quando Félix se declara para Carneirinho e, em que pese o clima romântico, o beijo não acontece!

Tudo bem, o beijo gay na telenovela global foi uma evolução! Mesmo sendo um beijo no estilo selinho e diferente dos beijos héteros das novelas, foi bonito! Mas essa demonstração de amor demorou a acontecer e traduz o quanto a televisão brasileira ainda preza pela manutenção de valores conservadores que negam e desprezam o que é diferente daquilo tido como natural, normal. Rejeitam o que esteja fora da caixa que aprisiona as sexualidades, numa lógica binária rígida que divide os indivíduos em homem e mulher, masculino e feminino, homossexual e heterossexual, e que estabelece uma linha padronizadora e hierarquizante de modelos ideais: homem/masculino/heterossexual e mulher/feminina/heterossexual.

Segundo Butler (2008) essa seria uma matriz de inteligibilidade cultural, uma cadeia linear das sociedades heteronormativas, que fixa uma conexão natural e definitiva entre gênero, sexo e sexualidade. A autora refuta este modelo e nega que gênero e sexo sejam naturais, nesse sentido, não há uma relação necessária entre um corpo e seu gênero.

Seguindo essa lógica de Butler (2008), podemos afirmar que também não existe uma verdade quanto aos papéis que são atribuídos aos gêneros.

E se a Globo se redime com a população LGBT, incluindo o beijo gay no último capítulo de sua trama, também reforça papéis que historicamente são atribuídos pela sociedade à gays e lésbicas como ficar responsável pelo cuidado dos pais idosos viúvos ou desvalidos. Claro! - Pensam eles - gays e lésbicas não formam famílias, mesmo quando vivem com seus companheiros, mesmo quando têm filhos, portanto devem assumir esse papel atribuído historicamente às solteironas amaldiçoadas e herdados pelas bichas e lésbicas, também amaldiçoadas socialmente. É necessário sempre uma moeda de troca para que algum tipo de “aceitação” aconteça. É preciso que o gay, a lésbica, o/a trans sejam disponíveis, provem que são melhores em tudo, para serem em alguma medida reconhecidos.

Essa reflexão me remete novamente à Butler e sua categoria de performatividade de gênero, que podemos traduzir como as práticas e discursos que se (re)afirmam e nesse fluxo vão construindo realidades passíveis de apreensão pelos indivíduos que as reproduzem no cotidiano ratificando identidades e ações normatizadas e excludentes dos indivíduos que com seus gêneros, desejos, práticas sexuais ou corpos ousam desafiar e subverter a cultura heteronormativa.


Félix subverteu essa cultura e mesmo premiado com um beijo do seu companheiro teve que pagar por isso: tornou-se cuidador amoroso do pai que toda a vida o desamou, humilhou, rejeitou e excluiu. Quer algo mais cristão do que o perdão sem restrições e a sujeição? 

BUTLER, Judith. Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.


domingo, 28 de julho de 2013



CACHOEIRA: MUITOS CONES E NENHUMA LIXEIRA

Simone Brandão


Nunca na história de Cachoeira se viu tanto cone nas ruas!

Algumas pessoas podem retrucar a tal observação afirmando: “mas isso é necessário para organizar o trânsito, já que a desordem sempre imperou, com carros, motos, bicicletas, ônibus, caminhões, vans, animais disputando espaço nas ruas e vielas, estacionando em locais impróprios, realizando manobras proibidas, circulando pela contramão”

Nem sempre foi assim!

As ruas estreitas e históricas da cidade foram projetadas em tempos em que o transporte era realizado utilizando-se prioritariamente animais e que não se planejava o espaço urbano prevendo-se a modernização dos transportes e proliferação de automóveis e motocicletas, ocasionada pela ineficiência do transporte de massa. Aliás, também não se previa o aumento populacional que se teve ao longo dos tempos.

E os cones e eu com isso?

A organização do trânsito é necessária, mas a educação no trânsito também. E os cones parecem assumir lugar onde falta planejamento e educação. A organização do trânsito e dos espaços públicos pode acontecer se a educação da população for promovida através de campanha em rádios, nas escolas, no comércio, por meio de divulgação de material informativo,  realizando reuniões públicas, dentre outras iniciativas educativas que poderiam envolver os cidadãos, de forma a despertar uma consciência sobre a necessidade de se organizar e respeitar o trânsito em Cachoeira para que haja maior fluidez nas ruas.

Então esse monte de cones seria dispensável...

Nesse sentido, poder-se-ia investir todo o dinheiro utilizado na compra de tantos cones, na aquisição de lixeiras para a cidade. Afinal, de que adianta ruas livres e fluidas, se ao transitar nos deparamos o tempo todo com lixo pelas ruas de Cachoeira? E não adianta culpar o cidadão apenas, porque por mais que sejamos educados e desejemos jogar o lixo em lixeiras, não as encontramos pela cidade.

O filme “Uma amizade sem fronteiras”, de François Dupeyron, conta a história de Ibrahim (Omar Sharif) um homem idoso e  muçulmano que é dono de uma mercearia em Paris e fica amigo de Momo (Pierre Boulager), um garoto judeu pobre, de 13 anos, que é abandonado pelo pai. Ibrahim decide adotar momo e se tornam cada vez mais amigos, especialmente quando ensina para o garoto o Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos. Esse belíssimo filme para além de discutir a superação dos conflitos e diferenças entre muçulmanos e judeus, vai tratar de outras expressões da questão social, entre elas os problemas de classe social, e numa viagem realizada pelos personagens por lugares como Albânia e outros países, Ibrahim sinaliza para Momo, como em lugares pobres não existem lixeiras.

Então como querer acompanhar o crescimento e evolução que Cachoeira teve nos últimos anos sem investir em ações básicas para a limpeza urbana, como a colocação de lixeiras pela cidade? Para ir além do cuidado que o poder público deve ter com os cidadãos de Cachoeira: Como promover o turismo, numa cidade que não preza pela limpeza e nem trata do seu lixo? Cidades com número populacional inferior ao de Cachoeira e com potencial turístico menor, como Conceição da Feira já estão equipadas com lixeiras padrão pela cidade. Por que no município  de Cachoeira, em pleno 2013, ainda não há essa consciência e esse investimento do governo?

Aliás, percebemos que os cidadãos de Cachoeira possuem mais consciência do que a própria prefeitura sobre a importância de se manter a cidade limpa. Incluímos aí o Rio Paraguaçu e suas margens, haja vista os mutirões realizados recentemente pelos cidadãos organizados visando a limpeza das margens do rio. Considerando-se que tal atividade tenha contado com algum apoio da prefeitura, o protagonismo foi da população, quando deveria ser do poder público.

O fato é que, tão ou mais importante que limpar as margens do rio, é evitar que esse lixo seja jogado no rio e para isso é preciso educação ambiental e adoção de outras medidas práticas como a compra de lixeiras para Cachoeira, colocando-as não apenas no centro da cidade mas também nos bairros periféricos que sofrem com o problema do lixo, talvez mais do que o centro da cidade.

Sabemos que lixo não tem classe social, embora as pesquisas mostrem que as cidades e países mais “desenvolvidos” produzem mais lixo. Por outro lado, a coleta de lixo também se dá de forma diferenciada em bairros mais pobres ou mais ricos. Nas cidades grandes, por exemplo, a coleta seletiva de lixo acontece prioritariamente, quando não exclusivamente, nos bairros centrais e de classe alta, enquanto que os bairros pobres e favelas não usufruem do mesmo serviço.

Em Cachoeira, também vemos ser reproduzida essa lógica na qual os serviços são oferecidos aos cidadãos de forma diferenciada conforme sua classe social: enquanto nas ruas mais centrais a coleta de lixo acontece duas vezes por dia, nas localidades como Cucuí de Cosme e adjacências a realidade é outra!

É preciso, portanto, se criar políticas que deem conta do ordenamento urbano, incluindo aí a organização do trânsito, a limpeza das ruas, seja através da colocação de lixeiras, da educação ambiental e educação no trânsito.  

A verdade é que o processo de ordenamento urbano, a partir da organização do trânsito e da limpeza da cidade deve se dar de forma ampla e não apenas de cima para baixo, onde cones tentam substituir a autoridade pública e cidadãos são responsabilizados pela manutenção da cidade limpa. O que estamos querendo chamar a atenção é para a necessidade de  enraizamento, no próprio processo de socialização, ou nas práticas sociais dos indivíduos e instituições, de valores que podem ser consolidados  a partir da educação permanente e da promoção de ações, também continuadas, convergindo para uma cidade com maior qualidade de vida e menos desigualdades.

Essa educação deve ser entendida como um processo de mão dupla, participativo e construtivo, valorizando o saber popular, envolvendo os indivíduos num objetivo que seja seu, mas também da cidade. Deve ter uma perspectiva dialética, de reconhecimento da historicidade e das contradições da vida social, buscando compreender os fenômenos e essa mesma vida social na sua totalidade, e por fim negar e superar uma determinada ordem – nesse caso o caos urbano que deve ser compreendido historicamente, reconhecendo os sujeitos envolvidos, as contradições inerentes, os fatores determinantes, de forma a se negar essa realidade que está posta e transformá-la coletivamente.

Na prática, é preciso se ter consciência que “ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (Freire, 2005).  Então, é o diálogo, como centralidade da educação e como prática da liberdade, que vai potencializar os indivíduos como agentes transformadores da realidade que estão inseridos.

Para além do processo de educação é preciso visão e vontade política dos governos, na superação dos problemas das cidades. Ainda dentro da crítica que tecemos sobre a questão do lixo e numa perspectiva propositiva, para além da aquisição das lixeiras para a cidade e da educação continuada em diversos espaços, como escola, rádio, jornais, material informativo, o lixo poderia ser não apenas um problema, mas a solução para várias expressões da questão social, como o desemprego, ou a inclusão de jovens, mulheres e outros segmentos em atividades produtivas.

A UFRB vem estabelecendo diversas parcerias nas cidades onde se instalou e no Recôncavo, de uma forma geral e nesse sentido a prefeitura poderia construir projetos conjuntos que trabalhassem a educação ambiental, a coleta seletiva, e construção de espaços de beneficiamento de lixo e produção de produtos a partir da reciclagem. Tais iniciativas viriam em conjunto com a criação de cooperativas de trabalhadores em reciclagem e comercialização de produtos reciclados.

Plásticos podem ser reciclados. Cones são feitos de plásticos, assim como as lixeiras. Quem sabe não possamos, lá na frente, produzir cones e comercializá-los ao invés de compra-los para substituir políticas mais amplas que devem dar conta de problemas como o caos no trânsito e a limpeza urbana?



Referências Bibliográficas

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

QUINTANEIRO, Tânia. Et al. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim e Weber. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.












quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Sistema Sócio Jurídico e formação qualificada de Assistentes Sociais: desafio e protagonismo no Recôncavo Baiano


Simone Brandão


O Centro de Artes Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, situado em Cachoeira, cidade do Recôncavo Bahiano, possui oito cursos de graduação: Artes Visuais, Ciências Sociais, Cinema e Audiovisual, Comunicação, Gestão Pública, História, Museologia e Serviço Social.

O Curso de Serviço Social formará no primeiro semestre de 2012 sua primeira turma de Assistentes Sociais. Os futuros formandos puderam, durante sua graduação e a partir da prática de estágio, conhecer diferentes campos de atuação profissional do Assistente Social, dentre os quais, o Complexo Penal de Feira de Santana.

O processo de trabalho de um assistente social no campo da execução penal é árduo e repleto de desafios, especialmente quando se busca no cotidiano implementar o projeto ético político da profissão, o que exige do Assistente Social uma intervenção qualificada.

E o que seria esse projeto ético político da profissão? Seguramente ele diz respeito a um projeto profissional do Serviço Social no Brasil que está vinculado aos projetos societários. Estes por sua vez estão ligados e são determinados pelas práticas sociais, pelas ações dos sujeitos individuais e coletivos, possuindo  intencionalidade e caráter político.

PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL: TROCANDO EM MIÚDOS

As diferentes necessidades humanas, inclusive de autorreprodução da humanidade no mundo prático material,  vão estabelecer, em dados momentos históricos, de forma intencional, as diferentes práticas sociais, com o objetivo de satisfazer tais necessidades.
Essas práticas, sejam elas profissionais, políticas, produtivas, artísticas, a partir do trabalho, vão transformar a natureza e retirar daí os meios precisos para a sobrevivência humana e para a reprodução das relações sociais.

“Tais relações, calcadas no suprimento (na sua busca) de necessidades sociais concretas, envolvem o conjunto das práticas sócio-humanas desencadeadas historicamente” (Teixeira, J; .B. Bráz, M. 2009, p.187)

Se por um lado as práticas sociais estabelecem uma objetivação ou produzem uma materialidade capaz de controlar a natureza e o comportamento dos sujeitos, por outro carregam uma subjetividade ou  projeções individuais e coletivas dos sujeitos que as praticam.

Nesse sentido, é correto afirmar que a prática ou a intervenção do assistente social possui uma direção social que o profissional imprime nela e que irá contemplar diferentes interesses presentes na dinâmica societária, sejam eles ideológicos, políticos, econômicos, culturais.

São, portanto os valores e as diretrizes presentes nas práticas profissionais que, quando coletivizados para uma parcela significativa da categoria e absorvidos pela mesma como seu modelo de atuação profissional, vão ser chamados de projeto profissional.

Em uma sociedade capitalista como a que vivemos, que é divida em classes (burguesia e proletariado), qualquer prática e projeto, inclusive a profissional, possui uma dimensão política, ou seja, se dão num contexto de contradições econômicas e políticas próprias de uma sociedade que possui grupos com interesses antagônicos.

Dessa forma o projeto profissional terá uma inclinação, se posicionando e pautando suas intervenções  a partir da identificação com um ou outro segmento social. Essa determinação é política e, portanto, podemos dizer que esse projeto profissional é um projeto político-profissional.

Vinculado a um projeto societário, que pode ser conservador ou transformador, irá, por conseguinte contribuir com o mesmo, mantendo ou transformando o status quo da sociedade.

No caso do Serviço Social no Brasil podemos afirmar sem titubear que o seu projeto ético-político está comprometido com um projeto de transformação societária, já que reafirmamos a todo tempo nosso compromisso com a luta pelo fim da desigualdade e da injustiça social, nossa defesa intransigente dos direitos e nosso comprometimento na construção de uma sociedade emancipada, livre  da exploração de classe, gênero, raça ou mesmo de orientação sexual.

Nesse sentido, o projeto ético político do Serviço Social possui valores que se opõe àqueles vigentes no projeto da sociedade contemporânea e não surgiu de repente, mas vem sendo construído historicamente, sofrendo influências não só do contexto social, econômico, político e cultural da sociedade brasileira, mas também do embate teórico e político no seio própria profissão, com diversos momentos de reações conservadoras.

A consolidação do projeto ético-político da profissão é um grande desafio, sobretudo em campos como a execução penal, onde os direitos são constantemente violados em suas instituições historicamente conservadoras, exigindo ainda mais a qualificação da intervenção profissional que deve ser comprometida com a defesa intransigente dos direitos humanos e a ampliação e efetivação da cidadania.

O SERVIÇO SOCIAL NA EXECUÇÃO PENAL

Historicamente,o serviço social na execução penal teve sua prática à princípio influenciada, como todos os outros campos de atuação da profissão, pela religião católica e possuía uma natureza assistencialista, hoje o campo da execução penal,  exige um constante olhar crítico dinamizado pelas ações  sobre o seu objeto de trabalho.

De outra forma  corre-se o risco de ter uma prática burocratizada, preocupada em deixar as mesas limpas, sem pilhas de papéis ou processos,  preocupada muito mais com “o que se faz” e  do modo como se faz, perdendo de vista o caráter reflexivo do “por quê e para quê” se faz .

É justamente esse questionamento do “por quê” e “para quê” que vai dar qualidade `a  intervenção profissional do assistente social da execução penal, e o chamar para a responsabilidade ético política, evitando que seja cooptado pela cultura prisional, que naturaliza as dificuldades, os entraves profissionais e as conseqüências derivadas do cerceamento do direito fundamental de liberdade e autonomia que os indivíduos possuem.

É importante ressaltar que os assistentes sociais da execução penal também trabalham na custódia dos indivíduos e se a responsabilidade ético política for subjugada à ação puramente técnica, os olhos correm o risco de adquirir a cegueira útil à convivência e conivência com as consagradas formas banalizadas de violações a que esses profissionais se deparam em seu cotidiano profissional e  que causa um grande desalento.

É preciso, portanto, emergir do trabalho de caráter meramente burocrático, enfrentando os grandes desafios de transformar o processo de trabalho do campo da execução penal em que a profissão tem um compromisso inestimável na garantia de direitos e emancipação humana.

Essa resignificação da intervenção profissional do Assistente Social da execução penal exige que o profissional possua competência teórico-metodológica, técnico-operativa e ético-política.

O sistema penitenciário tem como realidade a contumaz violação dos direitos humanos, e ao valorizar a segurança, o encarceramento e  a punição, negligencia os direitos previstos na Lei de Execução Penal e na própria Constituição.

Diante deste quadro, não pode o Assistente Social ser complacente ou  submisso a tais práticas institucionais violadoras ou mesmo assumir uma postura “neutra”.  No âmbito da correlação de forças contraditórias estabelecida na instituição prisional, onde de um lado está o Estado custodiador e seus agentes e de outro a população carcerária, o profissional de Serviço Social precisa se posicionar politicamente diante destas questões, direcionando sua prática que deve estar embasada em valores ético-morais presentes no seu código de ética.

Desse modo o Assistente Social está não só articulando sua intervenção aos interesses de sua população usuária, mas exercendo coerentemente sua competência ético política.

Para ter domínio da competência teórico metodológica em sua prática profissional, o assistente social que trabalha no campo da execução penal deve ainda ter conhecimentos que extrapolem os muros da prisão, ou seja, que ultrapasse o domínio institucional e se articule com a percepção da realidade social, política e cultural que perpassam a matéria com que trabalha.

É preciso para tanto lançar mão de um rigor teórico e metodológico que faça extrapolar o olhar e o entendimento sobre o que está aparente nos fenômenos, compreendendo assim a dinâmica social em sua essência e estabelecendo novas práticas profissionais que dêem conta dessa realidade desvendada para além do que está visível.

Conhecer, por exemplo, a conjuntura política, social, econômica e cultural do país, compreendendo a questão penitenciária, como uma expressão da questão social e reflexo de uma organização societária desigual e excludente que reforçada pela lógica neoliberal recrudesceu o estado penal e reduziu o estado social.

Por fim, é preciso ter competência técnico-operativa, criando e dominando um conjunto de habilidades técnicas que possibilitem a qualificação da intervenção profissional, garantindo o atendimento das demandas da população usuária.

O domínio das dimensões de competências aqui abordadas, e a necessária articulação das mesmas na prática profissional, é um desafio que está pautado no diálogo entre teoria e prática, processo se inicia na formação profissional do Assistente Social.

FORMAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS NO RECÔNCAVO

O curso de Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia,  vem cumprindo seu papel formador com excelência, buscado contemplar a necessária articulação entre as competências teórico-metodológica, técnico-operativa e ético-política e promovendo o diálogo entre investigação e intervenção, ação e pesquisa, ciência e técnica a partir da garantia de atividades de pesquisa ensino e extensão, tão necessárias a uma formação qualificada não só de profissionais mas de cidadãos comprometidos com a transformação social, que por sinal é um dos motes da profissão.

Essa preocupação com uma formação de profissionais qualificados e afinados com o serviço social na contemporaneidade se traduz na determinação de possibilitar experiências de estágio, pesquisa e extensão nos espaços sócio ocupacionais do campo jurídico, como já acontece no Complexo Penal de Feira de Santana e nos Centros de Acompanhamento das Medidas e Penas Alternativas.


Nos orgulhamos por ser não só o primeiro curso de Serviço Social em instituição pública de ensino superior do estado Bahia, mas também por contribuir na formação de profissionais com competência para atuar no campo da execução penal, um espaço sócio ocupacional onde se faz extremamente necessária a luta contra injustiças sociais, um espaço  importante, contraditório, que vem nas últimas décadas despontando e desafiando o profissional de Serviço Social na qualificação da sua intervenção.

Dicas Bibliográficas:

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1997.

GUINDANI, Miriam Krenzinger A. Tratamento Penal: a dialética do instituído e do instituinte. In: Serviço Social e Sociedade. Ano XXII, nº 67, 2001:39-51.

SIQUEIRA, Jailson Rocha. O trabalho e a assistência social na reintegração do preso à sociedade. In: Serviço Social e Sociedade.Ano XXII, nº 67, 2001:53-75.

SOUZA, Simone Brandão. Criminalidade Feminina: trajetórias e confluências na fala de presas do Talavera Bruce. ENCE/IBGE, 2005. Dissertação.

TEIXEIRA, Joaquina Barata, BRAZ, Marcelo. O Projeto Ético Político do Serviço Social. In:Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009.

TORRES, Andréia Almeida. "Direitos Humanos e sistema penitenciário brasileiro: desafio ético e político do serviço social".In: Serviço Social e Sociedade.Ano XXII, nº 67, 2001:76-92.
WACQUANT, Loïc. As prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: 2001.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

VAMOS PASSEAR NO BREGA ENQUANTO A POLÍCIA NÃO VEM: PROSTITUIÇÃO E SEGURANÇA PÚBLICA EM CACHOEIRA

SIMONE BRANDÃO SOUZA

Mais uma vez Cachoeira vira notícia de jornal e, como nas matérias anteriores do mesmo veículo, o Correio da Bahia, não é motivado por sua rica cultura, mas pela declaração da polícia de intencionar entrar com uma representação na justiça a fim de fechar os prostíbulos da cidade, ou “bregas” como são mais conhecidos.

Essa decisão, segundo o delegado, não seria fundada no moralismo, mas se justificaria pela “insegurança” gerada na cidade, pois as casas destinadas à prostituição, que todos em Cachoeira sabem a localização, estariam servindo de pontos de encontro e esconderijo para traficantes e de lugar de circulação de delinqüentes.

Seria este mais um capítulo da guerra santa? Os fins justificariam os meios? Que impacto esta medida teria na redução da violência na região ou na captura efetiva de criminosos? Que efeitos ou desdobramentos teriam na vida das profissionais de sexo, que sempre exerceram essa atividade? São questões que não querem e não devem calar!

A prostituição em Cachoeira

As casas de prostituição de Cachoeira existem há dezenas de anos e estão localizadas em rua da antiga zona portuária do município. Ainda no século XIX tinham como clientes, em especial, os viajantes. Nessa época, por ser o último ponto navegável atrás da Baía de Todos os Santos, a cidade tinha o status de entreposto comercial do Estado, o que movimentava bastante as ruas que margeiam o Rio Paraguaçu, favorecendo a instalação ali de cabarés de prostituição.

Aliás, essa associação de zona portuária com área de prostituição, historicamente é percebida de norte a sul do país. Em cidades portuárias a sobrevivência provinha do rio ou do mar e nesses lugares era comum a circulação de pobres, pedintes, prostitutas e marginalizados. Ali também era circulante o dinheiro, que movimentava a economia trazendo o desenvolvimento local.

O desenvolvimento, em geral não acontece sem exclusões, em especial daqueles que são vistos como uma ameaça à ordem urbana, já que se contrapõe à “virtude” e aos “bons costumes” da elite, e por estarem fora das redes mais abastadas se viam, muitas vezes para sobreviver, na necessidade de transgredir normas impostas que objetivavam o controle social.
Esses atores constituíam o centro de interesse da política de limpeza e higienização social que, na busca de sanear os espaços públicos, excluíam de diversas formas pobres, mendicantes e prostitutas que “enfeavam” a imagem das cidades.

Nesse contexto de fins do século XIX e início do século XX, as prostitutas foram alvos preferenciais de uma política moralista e higienista, posto que sua atividade sempre foi repleta de estigmas e preconceitos. Discursos médicos e juristas foram orquestrados e influenciaram na criação de imagens e representações sobre a prostituição, legitimando assim o enfrentamento do poder público a essa questão, pautado na exclusão e criminalização das prostitutas. 

Entretanto, historicamente, nem sempre foi assim...




Prostituição = modo em que as pessoas, 
mediante remuneração, de maneira usual 
comercializam o seu corpo em ato sexual com 
pessoas do sexo oposto ou do mesmo sexo.


Na antiguidade, em algumas civilizações, práticas assemelhadas à prostituição estavam associadas não à venda do corpo, mas à iniciação de jovens na puberdade.

Na Grécia e no Egito esse tipo de atividade sexual na verdade se constituía num ritual, onde as prostitutas eram consideradas sacerdotisas e recebiam honrarias de divindades em troca de favores sexuais, tinha, portanto um caráter místico, sagrado.

Posteriormente, as prostitutas passam a ter um papel político. Seu trabalho, gerenciado pelo Estado, era tributado e enriquecia a elite dominante. Também eram respeitadas e influentes politicamente.   

Num terceiro momento com o Cristianismo, em nome da moral e dos bons costumes as prostitutas passam a ser execradas, em função tanto da moral cristã, quanto da disseminação da sífilis.

Em período ulterior, começa a haver certa tolerância com a prostituição, já que as profissionais do sexo passam a ser consideradas um “mal necessário”, pois assegurariam o funcionamento da sociedade “protegendo” o modelo burguês de família.

Nesta lógica, as prostitutas ajudavam a garantir um padrão de família, onde a união do homem e da mulher muitas vezes não se dava por uma determinação afetiva, mas objetivando afiançar interesses materiais entre as famílias.

Estamos falando de um protótipo familiar, onde o desejo sexual e o exercício da sexualidade e do prazer eram condenados pela igreja, sendo a procriação o propósito maior do casamento. Eram as prostitutas que possibilitavam, portanto, aos homens vivenciar de forma mais livre sua sexualidade, guardando a “santidade” do lar e da esposa.

Nesse contexto social, o corpo da prostituta era entendido como mercadoria e a partir de uma lógica capitalista, tinha valor de troca.

A legislação e a prostituição

No que diz respeito à regulamentação legal das profissionais do sexo, no Brasil a atividade figurou por anos no antigo código penal brasileiro associado à contravenção, entretanto mais recentemente, a partir de 1942 o país adotou o sistema legal abolicionista em relação à prostituição. Nesta lógica a prostituta é percebida como vítima só exercendo a atividade coagida por alguém que a explora e recebe parte do lucro da profissional do sexo.

 Vejam se essa forma de exploração 
 não se assemelha com a lógica de exploração
 da classe trabalhadora pelos empregadores
 no sistema capitalista!!! 


A legislação que vigora neste sistema até os dias de hoje, não proíbe ou pune a profissional do sexo por se prostituir, mas sim o empresário ou agenciador que a “explora”. (Artigos 228 e 229 do Código Penal).

Países como Uruguai, Equador, Bolívia, Alemanha e Holanda adotaram o regime regulamentarista que possibilita aos profissionais de sexo ter garantias trabalhistas legais, desde que cumprindo exigências como exames de saúde periódicos.

Alguns poucos países, entretanto são adeptos do regime proibicionista, caso dos Estados Unidos. Nesta modalidade prostituir-se ou prostituir alguém é ilegal. Os indivíduos não podem decidir ou dispor livremente de seus corpos e de sua sexualidade. É o Estado quem define.

Uma sexualidade que, também na prostituição, não pode ser vista como algo “dado pela natureza”, que está presente no corpo da mulher e que é vivenciado igualmente em épocas e lugares determinados. A sexualidade na verdade abrange processos culturais múltiplos, “como uma invenção social que se constitui historicamente nos inúmeros discursos que regulam e normatizam, produzindo saberes e verdades”. (LOPONTE,2002)

 “Portanto, os significados sexuais e, sobretudo, a própria noção de experiência ou comportamento sexual não seriam passíveis de generalização, dado que estão ancorados em teias de significados articulados a outras modalidades de classificação, como o sistema de parentesco e de gênero, as classificações etárias, a estrutura de privilégios  sociais e de distribuição de riqueza, etc”(Heilborn, 1999)




Hoje no Brasil, a prostituição não é crime, mas a exploração de prostitutas sim. Apesar destas não poderem ser criminalizadas e da categoria ‘profissional do sexo’ figurar na Classificação Brasileira de ocupações do Ministério do Trabalho e Emprego, o movimento organizado de prostitutas no país ainda pleiteia o reconhecimento legal da profissão, dentro do modelo regulamentarista.

Desde 2003 foi encaminhado para apreciação projeto de lei Nº98, de autoria de Fernando Gabeira, que reconhece os serviços de natureza sexual, garantindo direitos aos profissionais do sexo, entretanto o projeto encontra-se parado. 

Projeto de lei n° 98, de 2003
(Do Sr. Fernando Gabeira)
Dispõe sobre a exigibilidade de pagamento por serviço de natureza sexual e suprime os arts. 228, 229 e 231 do Código Penal.
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1° É exigível o pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual.
§ 1º O pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual será devido igualmente pelo tempo em que a pessoa permanecer disponível para tais serviços, quer tenha sido solicitada a prestá-los ou não.
§ 2º O pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual somente poderá ser exigido pela pessoa que os tiver prestado ou que tiver permanecido disponível para os prestar.
Art. 2° Ficam revogados os artigos 228, 229 e 231 do Código Penal.
Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data da sua publicação.




Avanços sim, retrocesso não!

Como é possível perceber tem-se avançado no reconhecimento da prostituição como atividade profissional e conseqüentemente na garantia dos direitos das profissionais do sexo no Brasil. O protagonismo dessa luta é do próprio movimento organizado de prostitutas, que vem, através da mobilização da categoria e de ações engajadas nas áreas de educação, saúde, comunicação e cultura promover a cidadania das profissionais do sexo.

O Grupo Davida do Rio de Janeiro e a Aprosba (Associação de Prostitutas da Bahia) são exemplos dessas organizações de profissionais do sexo que contam com a parceria de órgãos governamentais de Direitos Humanos, Saúde, Segurança Pública, Trabalho, Cultura, ONGS e agências nacionais e internacionais de cooperação, além de artistas e organizações privada. Podemos destacar algumas bandeiras da sua luta:




- Assumir a identidade profissional e buscar o reconhecimento da atividade
- Manter o movimento social de prostituta organizado
- Liberdade, dignidade, solidariedade e respeito às diferenças;
- Protagonismo e autonomia
- Valorização da vida e do trabalho
- Rejeição da vitimização
- Direito à cidadania e recusa ao gueto

A guisa de conclusão:

Retomando a matéria jornalística que originou esse artigo, podemos afirmar que a intervenção do Estado, para acabar com a atividade de prostituição em Cachoeira caminha na contramão da história, posto que movimentos sociais e setores públicos, na contemporaneidade, vêm somando esforços para que haja o reconhecimento dessa atividade profissional e a qualificação do debate na sociedade sobre a questão.

Se a polícia tem por função zelar pela segurança e pela garantia dos direitos dos cidadãos, por que não estender tais objetivos a esse segmento da sociedade, no caso as profissionais do sexo, assegurando o exercício da atividade a mulheres que tem na prática sexual o seu único meio de subsistência e que, segundo seus relatos, por estarem tanto tempo inseridas nesse processo de trabalho e não possuírem outra qualificação profissional e levando-se em consideração o preconceito social, se tornam inempregáveis, ante as exigências e seletividade do atual mercado de trabalho.

A inteligência policial, que parece já ter mapeado as rotinas e rotas de criminosos na cidade de Cachoeira, certamente tem capacidade de enfrentar a violência sem reproduzir mais violência, sem excluir ou criminalizar segmentos da sociedade já tão discriminados e estigmatizados historicamente. É preciso ter o cuidado de não se voltar a reproduzir a lógica higienista, na sociedade, em prol do alcance de objetivos, que podem ser atingidos através de medidas mais coerentes, fundamentadas e que não sejam violadoras dos direitos.