quinta-feira, 24 de abril de 2014

O caso DG ou por mais Estado Social e menos Estado Penal!





É impossível aceitar a emissora Globo com seu discurso que reforça o mais Estado penal, mas nunca reivindica o mais Estado social! Vi isso hoje na Globo News com Leilane Neubarth num debate com Breno, jurista do Rio de Janeiro, analisando a morte de DG no Morro Pavão Pavãozinho em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, e a relação dessa morte com o tiroteio entre policiais e o bando de traficantes liderados por Pitbull, um traficante, que estava foragido desde 2013 quando foi beneficiado por visitas periódicas ao lar.

A jornalista pergunta ao jurista quais os critérios para esse benefício e quem o concede,  e é esclarecida pelo jurista que o mesmo é concedido pelo juiz mediante informações prestadas pelos diretores das unidades prisionais, baseado em bom comportamento durante cumprimento da pena e existência de família com endereço fixo que se comprometa com essa medida de progressiva inserção social. Ele explica ainda, que a pena privativa de liberdade é progressiva, ou seja vai do regime fechado ao aberto, passando pelo semi-aberto  e que tem por pressuposto garantir que a reinserção do preso na sociedade seja gradativa, o que se converte em benefício para o preso e para a sociedade.

Leilane continua suas inquisições questionando a concessão do benefício, querendo responsabilizar o juiz, o diretor e sugerindo que a lei deve ser mais dura, ou seja,  que ao preso deve ser negado qualquer benefício se este for entendido como um chefe do tráfico, por exemplo. O Jurista explica que para casos de presos considerados líderes já existe o RDD – Regime Disciplinar Diferenciado – bastante rígido e que, portanto, só se  pode  permanecer no mesmo por um ano, e que toda pena um período cessa, tem fim,  e que nosso sistema penal é progressivo, o que é bom pois permite ao sujeito ir se readaptando à vida em sociedade aos poucos.

Talvez fosse interessante que o jurista fizesse um resgate para Leilane, contando um pouco da história das prisões e contextualizado a prisão hoje, seus objetivos e os dilemas da reinserção social. Lamentavelmente ele não fez, mas tentarei brevemente situar essas informações aqui.

Na verdade se remontarmos a história do surgimento das prisões veremos que essa instituição,  através de suas normatizações, objetivava não só punir os criminosos, a partir de uma lógica moral de retribuição do mal causado, mas produzir, através do castigo, homens dóceis para  servir ao sistema capitalista, já que uma forma de punição, além da perda da liberdade, era o trabalho forçado de forma a tornar esses indivíduos uma massa de pessoas subservientes para vender barato sua mão de obra de forma a expandir o capitalismo, através do trabalho alienado.

Então podemos dizer que historicamente a prisão é uma produção social, é um mandato da sociedade, e a relação de custódia representa os interesses dessa sociedade e da sua moral.

A gente pode afirmar também que, a função social da prisão deveria ser, hoje,  a redução da violência, a redução da criminalidade e não somente a punição do criminoso ou a retirada desse criminoso do convívio social. Entretanto, a função social da prisão que não é falada, que é velada, mas que serve ao sistema é custodiar os “sobrantes” do mercado de trabalho.

Esses sobrantes como diz Loic Wacquant (1997)  em "As Prisões da Miséria" é aquela massa de indivíduos que na lógica da criminalização da pobreza, própria do modelo neoliberal, é tida como a classe perigosa, por sua aparência, pelos locais que reside e pelo grupo social que faz parte. São aqueles que o mercado de trabalho hoje, por usa configuração e exigências, não absorve e que depois de anos na prisão vão se tornar ainda mais inempregáveis, pois estão completamente obsoletos em relação às expectativas do mercado.

Nesta lógica da criminalização da pobreza, diminui-se o estado social, ou desinveste-se nas políticas públicas e investe-se no estado penal. De que forma? Através da construção de mais presídios, do armamento das polícias ávidas no combate dos indivíduos das classes perigosas, do aumento do aprisionamento e do recrudescimento das leis.

Hoje, nesse cenário sombrio do sistema prisional, a proposta de "ressocialização" da prisão é uma falácia pois como afirma Baratta (1990)" “Tratamento” e “ressocialização” pressupõem uma postura passiva do detento e ativa das instituições: são heranças anacrônicas da velha criminologia positivista que tinha o condenado como um indivíduo anormal e inferior que precisava ser (re)adaptado à sociedade, considerando acriticamente esta como “boa” e aquele como “mau”",  então nessa lógica funcionalista/positivista a socialização que os indivíduos tiveram é negada, rechaçada, já que é considerada equivocada se comparada a um modelo burguês de socialização que, se pressupõe, seja o ideal. Por esse sentido ideológico que a ressocialização possui e pelas práticas que a prisão estabelece, priorizando a ordem interna e a segurança externa em detrimento de atividades de reinserção social, é que "a prisão não pode produzir resultados úteis para a ressocialização do sentenciado mas (...) ao contrário, impõe condições negativas a esse objetivo” .

"O sistema prisional deve, portanto, propiciar aos presos uma série de benefícios que vão desde instrução, inclusive profissional, até assistência médica e psicológica para proporcionar-lhes uma oportunidade de reintegração e não mais como um aspecto da disciplina carcerária – compensando, dessa forma, situações de carência e privação, quase sempre freqüentes na história de vida dos sentenciados, antes de seu ingresso na senda do crime." (BAratta, 1990)

Pensando sobre todas essas questões  e retomando o programa da Globo News é muito interessante perceber como se questiona o tempo todo a concessão de benefícios (que são direitos, que é lei) para presos, como se reforça o tempo todo a necessidade de endurecer penas e leis, mas ninguém (a mídia, especialmente) questiona ou critica  de que forma o sistema prisional promove a reinserção social dos presos, se a política penitenciária de fato procura “recuperar” o preso no sentido de promover práticas de possibilitem esse retorno à sociedade de forma digna e fora da criminalidade.


 Eu digo que não! Que não existe política penitenciária para esse fim, que o Estado não consegue recuperar ninguém porque não há investimento nessa recuperação, não há políticas que objetivem esse fim,  a prisão é apenas violência e violação de direitos. A sociedade por sua vez é refratária à reinserção dessas pessoas. Quem lhes dá oportunidade quando saem da prisão? Quase ninguém! E, para além disso, existe um mercado enorme legal que lucra com a criminalidade e com as prisões: quem as constrói, fornece comidas, fardamentos, armamentos, equipamentos de segurança, segurança patrimonial, administração de cadeias privatizadas, e por aí vai...isso ninguém toca, isso ninguém questiona ou se mobiliza para mudar.

 Enquanto esse pensamento pequeno burguês permanecer a criminalidade não vai diminuir e outras vítimas como DG continuarão a existir.


"Redefinir os conceitos tradicionais de tratamento e ressocialização, em termos do exercício dos direitos das pessoas presas, e em termos de benefícios e oportunidades de trabalho -- inclusive na sociedade -- que são proporcionadas a elas, depois do cumprimento da pena, por parte das instituições e comunidade, ao nosso ver, constitui um núcleo importante da construção de uma teoria e uma prática novas da reintegração dos apenados, de acordo com uma interpretação dos princípios e das normas constitucionais e internacionais sobre a pena." (Baratta, 1990)

Referências Bibliográficas

BARATTA, Alessandro. Ressocialização ou Controle Social: Uma abordagem crítica da “reintegração social” do sentenciado. Alemanha Federal. Disponível em: www.eap.sp.gov.br/pdf/ressocializacao.pdf.

WACQUANT, L. “Proscritos da cidade: estigma e divisão social no gueto americano e na periferia urbana francesa”. In: Novos Estudos CEBRAP. n.º 43. 1997

______. As prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Zahar , 2001.


quinta-feira, 20 de março de 2014

Direitos Humanos para quem?

Tenho visto, após a morte de Cláudia no Rio de Janeiro e com os ataques às UPP's no Rio de Janeiro, algumas postagens no Facebook, perguntando pelos “Direitos Humanos”, reforçando aquele velho discurso que os direitos humanos são apenas para as vítimas das ações policiais e não para os policiais.

Primeiro precisamos pensar que os Direitos humanos não resultam de uma concessão da sociedade política, mas são direitos que a sociedade política tem o dever de reconhecer  e garantir, conforme sinaliza Herkenhoff (2003) e que foram conquistados ao longo dos tempos, portanto todas as pessoas, independentemente de sua condição étnico-racial, econômica, social, de gênero ou  criminal são sujeitas e detentoras dos direitos humanos. Portanto se eu  tenho direito a vida, o outro tem o dever de preservar a minha vida. Os direitos são universais.

A  crítica conservadora aos direitos humanos, no entanto,  se mistura um pouco com o senso comum e  entende os DH como  privilégios legitimados.

Ora, quando  não se entende os direitos como universais, começa-se a interpretá-los como privilégios e a agir para garantir privilégios ou negar os direitos que se entende como privilégios.

Então Setores da mídia, da própria sociedade e agentes políticos encampam e reproduzem o discurso de que os direitos humanos ignoram as vítimas e que por isso não pensam no conjunto bom da sociedade.

Nessa lógica conservadora, que é também punitiva, a convivência se faz pela violência, e aí começa-se a  dizer que existe uma separação entre direitos de bandidos e direitos de pessoas corretas criando-se um processo de legitimação da violência contra esses segmentos, seja, por exemplo em relação à presos, seja relativo aqueles suspeitos de serem criminosos. Isso também legitima o endurecimento de leis ou o tratamento de expressões da questão social com mais violência.

Então, na visão conservadora, a ordem só é possível, a partir da violência ou de práticas antidemocráticas, visto que as leis são consideradas insuficientes ou “coniventes” com os atos criminosos.

Essa é a lógica que os segmentos mais conservadores tem dos direitos humanos: que esses direitos seriam apenas para humanos considerados direitos e não para todos os seres humanos, e com isso o próprio Estado viola os direitos, quando age de forma discricionária e nega determinados direitos a determinadas parcelas da população.

O que precisamos entender de uma vez por todas é que os DH são padrões de referência na vida civilizada, e que também expressam e traduzem os diferentes níveis de cidadania e não são os direitos “dos humanos direitos”, mas todos os direitos de todo ser humano, como diz Dahmer e Vinagre (2007).

Os direitos humanos buscam, na verdade, defender a pessoa humana não de um indivíduo qualquer isolado, mas do exercício abusivo do poder, principalmente das instituições do poder político, econômico, social e cultural.

Quando se fala que os “direitos humanos defendem os bandidos e não a polícia” , na verdade essa visão do senso comum não percebe que o foco dos direitos humanos aí é a relação de conflito que se dá entre: pessoa humana (criminoso) X Estado ( polícia) no sentido de se evitar abusos de poder (torturas, prisões ilegais) do Estado com essa pessoa humana (mesmo consideradas criminosas).


"Podemos dizer que existe uma questão de DH quando há uma relação de poder que gera desigualdade e discriminação, e a parte vulnerabilizada é discriminada, submetida, forçada abusivamente aos interesses/vontade da outra parte. EX:homem X mulher (relações de gênero), adulto X criança, Branco X negro, rico X pobre, Hétero X homo, pessoa não deficiente X deficiente, jovem X idoso, pessoa humana X outras espécies" (Borges, 2006)


Na verdade os DH não regem relações entre iguais, apesar da pressuposição de igualdade entre os indivíduos, mas opera em defesa dos vulnerabilizados nas relações de poder e têm se movido na história impulsionado pela mobilização da sociedade civil contra todos os tipos de dominação, exclusão e repressão.


O que vemos no momento é a morte de uma mulher, pobre, negra trabalhadora ocasionada pela ação de policiais que representam o Estado e que na relação de poder com a sociedade, ou com o cidadão, seja ele criminoso ou não, tem mostrado que há uma grande desigualdade, onde esse braço do Estado tem pesado a sua mão, traduzindo-se nos números de mortes resultantes das ações de policias como aqueles envolvidos na morte de Cláudia. Talvez os ataques às UPPs sejam uma tentativa, dessa comunidade restituir esse poder, pois  é também na ausência do poder que a violência tem solo fértil para se propagar.


Referências Bibliográficas


ARENDT. Hannah. Sobre a Violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992.

BORGES, Alci Marcus Ribeiro. Direitos Humanos: conceitos e preconceitos. Jus Navigandi. Teresina, ano 11, n.1248, 2006.

PEREIRA, T.M. Dahmer e VINAGRE, M. Ética e direitos humanos. Curso de capacitação ética para agentes multiplicadores, caderno quatro. Brasília; CFESS, 2007.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O AMOR LGBT NA TV: ENTRE BEIJOS E CONSERVADORISMO

Simone Brandão Souza


A Globo não é boba não!  Com o crescimento do poder político dos evangélicos e a midiatização neopentecostal, envolvendo aí a mercantilização da fé e dos seus produtos, a emissora parece ter vislumbrado nesse público um filão econômico e também a possibilidade de estar aliada à esse poder emergente. Para tanto, criou personagens evangélicos, passou a promover festivais de música gospel, o que parece ter acontecido também após aproximação recente com o líder Silas Malafaia, segundo notícias da mídia.

Ao mesmo tempo em que se redime junto a esse público (que no passado demonizava a televisão e hoje são consumidores de entretenimentos religiosos), cria personagens evangélicos considerados coerentes com os mandamentos religiosos, à exemplo de Gina de Amor à vida,   expurgando as personagens crentes caricatas nas telenovelas, e  estabelecendo relações econômicas promissoras com as lideranças neopentecostais.

Mas se a Globo acende vela para Deus também acende para os gays, mas bem no fim do túnel!

Depois de tantas novelas onde o amor de gays e lésbicas foi apresentado de forma superficial ou simplesmente retirado das tramas, à exemplo das personagens de Christiane Torloni e Silvia Pfeiffer em Torre de Babel quando foram assassinadas num claro receio da reação de uma sociedade ainda heteronormativa e conservadora, a globo resolveu promover um beijo gay, o primeiro na emissora, no apagar das luzes da novela Amor à Vida, no ´derradeiro capítulo, e só depois de os espectadores se dizerem frustrados com a cena de dias antes, quando Félix se declara para Carneirinho e, em que pese o clima romântico, o beijo não acontece!

Tudo bem, o beijo gay na telenovela global foi uma evolução! Mesmo sendo um beijo no estilo selinho e diferente dos beijos héteros das novelas, foi bonito! Mas essa demonstração de amor demorou a acontecer e traduz o quanto a televisão brasileira ainda preza pela manutenção de valores conservadores que negam e desprezam o que é diferente daquilo tido como natural, normal. Rejeitam o que esteja fora da caixa que aprisiona as sexualidades, numa lógica binária rígida que divide os indivíduos em homem e mulher, masculino e feminino, homossexual e heterossexual, e que estabelece uma linha padronizadora e hierarquizante de modelos ideais: homem/masculino/heterossexual e mulher/feminina/heterossexual.

Segundo Butler (2008) essa seria uma matriz de inteligibilidade cultural, uma cadeia linear das sociedades heteronormativas, que fixa uma conexão natural e definitiva entre gênero, sexo e sexualidade. A autora refuta este modelo e nega que gênero e sexo sejam naturais, nesse sentido, não há uma relação necessária entre um corpo e seu gênero.

Seguindo essa lógica de Butler (2008), podemos afirmar que também não existe uma verdade quanto aos papéis que são atribuídos aos gêneros.

E se a Globo se redime com a população LGBT, incluindo o beijo gay no último capítulo de sua trama, também reforça papéis que historicamente são atribuídos pela sociedade à gays e lésbicas como ficar responsável pelo cuidado dos pais idosos viúvos ou desvalidos. Claro! - Pensam eles - gays e lésbicas não formam famílias, mesmo quando vivem com seus companheiros, mesmo quando têm filhos, portanto devem assumir esse papel atribuído historicamente às solteironas amaldiçoadas e herdados pelas bichas e lésbicas, também amaldiçoadas socialmente. É necessário sempre uma moeda de troca para que algum tipo de “aceitação” aconteça. É preciso que o gay, a lésbica, o/a trans sejam disponíveis, provem que são melhores em tudo, para serem em alguma medida reconhecidos.

Essa reflexão me remete novamente à Butler e sua categoria de performatividade de gênero, que podemos traduzir como as práticas e discursos que se (re)afirmam e nesse fluxo vão construindo realidades passíveis de apreensão pelos indivíduos que as reproduzem no cotidiano ratificando identidades e ações normatizadas e excludentes dos indivíduos que com seus gêneros, desejos, práticas sexuais ou corpos ousam desafiar e subverter a cultura heteronormativa.


Félix subverteu essa cultura e mesmo premiado com um beijo do seu companheiro teve que pagar por isso: tornou-se cuidador amoroso do pai que toda a vida o desamou, humilhou, rejeitou e excluiu. Quer algo mais cristão do que o perdão sem restrições e a sujeição? 

BUTLER, Judith. Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.