segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O AMOR LGBT NA TV: ENTRE BEIJOS E CONSERVADORISMO

Simone Brandão Souza


A Globo não é boba não!  Com o crescimento do poder político dos evangélicos e a midiatização neopentecostal, envolvendo aí a mercantilização da fé e dos seus produtos, a emissora parece ter vislumbrado nesse público um filão econômico e também a possibilidade de estar aliada à esse poder emergente. Para tanto, criou personagens evangélicos, passou a promover festivais de música gospel, o que parece ter acontecido também após aproximação recente com o líder Silas Malafaia, segundo notícias da mídia.

Ao mesmo tempo em que se redime junto a esse público (que no passado demonizava a televisão e hoje são consumidores de entretenimentos religiosos), cria personagens evangélicos considerados coerentes com os mandamentos religiosos, à exemplo de Gina de Amor à vida,   expurgando as personagens crentes caricatas nas telenovelas, e  estabelecendo relações econômicas promissoras com as lideranças neopentecostais.

Mas se a Globo acende vela para Deus também acende para os gays, mas bem no fim do túnel!

Depois de tantas novelas onde o amor de gays e lésbicas foi apresentado de forma superficial ou simplesmente retirado das tramas, à exemplo das personagens de Christiane Torloni e Silvia Pfeiffer em Torre de Babel quando foram assassinadas num claro receio da reação de uma sociedade ainda heteronormativa e conservadora, a globo resolveu promover um beijo gay, o primeiro na emissora, no apagar das luzes da novela Amor à Vida, no ´derradeiro capítulo, e só depois de os espectadores se dizerem frustrados com a cena de dias antes, quando Félix se declara para Carneirinho e, em que pese o clima romântico, o beijo não acontece!

Tudo bem, o beijo gay na telenovela global foi uma evolução! Mesmo sendo um beijo no estilo selinho e diferente dos beijos héteros das novelas, foi bonito! Mas essa demonstração de amor demorou a acontecer e traduz o quanto a televisão brasileira ainda preza pela manutenção de valores conservadores que negam e desprezam o que é diferente daquilo tido como natural, normal. Rejeitam o que esteja fora da caixa que aprisiona as sexualidades, numa lógica binária rígida que divide os indivíduos em homem e mulher, masculino e feminino, homossexual e heterossexual, e que estabelece uma linha padronizadora e hierarquizante de modelos ideais: homem/masculino/heterossexual e mulher/feminina/heterossexual.

Segundo Butler (2008) essa seria uma matriz de inteligibilidade cultural, uma cadeia linear das sociedades heteronormativas, que fixa uma conexão natural e definitiva entre gênero, sexo e sexualidade. A autora refuta este modelo e nega que gênero e sexo sejam naturais, nesse sentido, não há uma relação necessária entre um corpo e seu gênero.

Seguindo essa lógica de Butler (2008), podemos afirmar que também não existe uma verdade quanto aos papéis que são atribuídos aos gêneros.

E se a Globo se redime com a população LGBT, incluindo o beijo gay no último capítulo de sua trama, também reforça papéis que historicamente são atribuídos pela sociedade à gays e lésbicas como ficar responsável pelo cuidado dos pais idosos viúvos ou desvalidos. Claro! - Pensam eles - gays e lésbicas não formam famílias, mesmo quando vivem com seus companheiros, mesmo quando têm filhos, portanto devem assumir esse papel atribuído historicamente às solteironas amaldiçoadas e herdados pelas bichas e lésbicas, também amaldiçoadas socialmente. É necessário sempre uma moeda de troca para que algum tipo de “aceitação” aconteça. É preciso que o gay, a lésbica, o/a trans sejam disponíveis, provem que são melhores em tudo, para serem em alguma medida reconhecidos.

Essa reflexão me remete novamente à Butler e sua categoria de performatividade de gênero, que podemos traduzir como as práticas e discursos que se (re)afirmam e nesse fluxo vão construindo realidades passíveis de apreensão pelos indivíduos que as reproduzem no cotidiano ratificando identidades e ações normatizadas e excludentes dos indivíduos que com seus gêneros, desejos, práticas sexuais ou corpos ousam desafiar e subverter a cultura heteronormativa.


Félix subverteu essa cultura e mesmo premiado com um beijo do seu companheiro teve que pagar por isso: tornou-se cuidador amoroso do pai que toda a vida o desamou, humilhou, rejeitou e excluiu. Quer algo mais cristão do que o perdão sem restrições e a sujeição? 

BUTLER, Judith. Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.