Simone Brandão Souza
A
Globo não é boba não! Com o crescimento
do poder político dos evangélicos e a midiatização neopentecostal, envolvendo
aí a mercantilização da fé e dos seus produtos, a emissora parece ter
vislumbrado nesse público um filão econômico e também a possibilidade de estar
aliada à esse poder emergente. Para tanto, criou personagens evangélicos, passou
a promover festivais de música gospel, o que parece ter acontecido também após
aproximação recente com o líder Silas Malafaia, segundo notícias da mídia.
Ao
mesmo tempo em que se redime junto a esse público (que no passado demonizava a
televisão e hoje são consumidores de entretenimentos religiosos), cria personagens
evangélicos considerados coerentes com os mandamentos religiosos, à exemplo de
Gina de Amor à vida, expurgando as
personagens crentes caricatas nas telenovelas, e estabelecendo relações econômicas promissoras
com as lideranças neopentecostais.
Mas
se a Globo acende vela para Deus também acende para os gays, mas bem no fim do
túnel!
Depois
de tantas novelas onde o amor de gays e lésbicas foi apresentado de forma
superficial ou simplesmente retirado das tramas, à exemplo das personagens de Christiane Torloni e Silvia Pfeiffer em
Torre de Babel quando foram assassinadas num claro receio da reação de uma
sociedade ainda heteronormativa e conservadora, a globo resolveu promover um
beijo gay, o primeiro na emissora, no apagar das luzes da novela Amor à Vida,
no ´derradeiro capítulo, e só depois de os espectadores se dizerem frustrados
com a cena de dias antes, quando Félix se declara para Carneirinho e, em que
pese o clima romântico, o beijo não acontece!
Tudo bem, o beijo gay na telenovela global foi
uma evolução! Mesmo sendo um beijo no estilo selinho e diferente dos beijos
héteros das novelas, foi bonito! Mas essa demonstração de amor demorou a
acontecer e traduz o quanto a televisão brasileira ainda preza pela manutenção
de valores conservadores que negam e desprezam o que é diferente daquilo tido
como natural, normal. Rejeitam o que esteja fora da caixa que
aprisiona as sexualidades, numa lógica binária rígida que divide os indivíduos
em homem e mulher, masculino e feminino, homossexual e heterossexual, e que
estabelece uma linha padronizadora e hierarquizante de modelos ideais:
homem/masculino/heterossexual e mulher/feminina/heterossexual.
Segundo
Butler (2008) essa seria uma matriz de inteligibilidade cultural, uma cadeia
linear das sociedades heteronormativas, que fixa uma conexão natural e
definitiva entre gênero, sexo e sexualidade. A autora refuta este modelo e nega
que gênero e sexo sejam naturais, nesse sentido, não há uma relação necessária
entre um corpo e seu gênero.
Seguindo
essa lógica de Butler (2008), podemos afirmar que também não existe uma verdade
quanto aos papéis que são atribuídos aos gêneros.
E se
a Globo se redime com a população LGBT, incluindo o beijo gay no último
capítulo de sua trama, também reforça papéis que historicamente são atribuídos
pela sociedade à gays e lésbicas como ficar responsável pelo cuidado dos pais
idosos viúvos ou desvalidos. Claro! - Pensam eles - gays e lésbicas não formam
famílias, mesmo quando vivem com seus companheiros, mesmo quando têm filhos,
portanto devem assumir esse papel atribuído historicamente às solteironas
amaldiçoadas e herdados pelas bichas e lésbicas, também amaldiçoadas
socialmente. É necessário sempre uma moeda de troca para que algum tipo de
“aceitação” aconteça. É preciso que o gay, a lésbica, o/a trans sejam disponíveis,
provem que são melhores em tudo, para serem em alguma medida reconhecidos.
Essa
reflexão me remete novamente à Butler e sua categoria de performatividade de
gênero, que podemos traduzir como as práticas e discursos que se (re)afirmam e
nesse fluxo vão construindo realidades passíveis de apreensão pelos indivíduos
que as reproduzem no cotidiano ratificando identidades e ações normatizadas e
excludentes dos indivíduos que com seus gêneros, desejos, práticas sexuais ou
corpos ousam desafiar e subverter a cultura heteronormativa.
Félix
subverteu essa cultura e mesmo premiado com um beijo do seu companheiro teve
que pagar por isso: tornou-se cuidador amoroso do pai que toda a vida o
desamou, humilhou, rejeitou e excluiu. Quer algo mais cristão do que o perdão
sem restrições e a sujeição?